O paradigma da saída ad gentes questiona a ação evangelizadora da Igreja. Este é a temática central do 4º Congresso Missionário Nacional (4º CMN) a ser realizado, nos dias 7 a 10 de setembro, em Recife (PE). A programação do Congresso prevê testemunhos, oficinas, celebrações e cinco conferências. Padre Estêvão Raschietti, SX, missionário xaveriano e diretor do Centro Cultural Conforti em Curitiba (PR) será um dos conferencistas. Publicamos, a seguir, uma das reflexões do missiólogo sobre a missão ad gentes.
Dizem que, ao ser questionado sobre as possíveis estruturas caducas que a Igreja teria que abandonar (cf. DAp 265), o papa Francisco teria sido bastante perspicaz ao responder que seria preciso, antes, “sair” para enxergar quais dessas estruturas precisariam ser transformadas. Portanto, “sair” está em primeiro lugar e define a necessidade de ter, como caminho fundamental, a missão para toda Igreja.
Na sua origem, a palavra “missão” significa “envio”, “partir”, “sair”. Todo o “envio” pressupõe um ponto de partida, um ponto de chegada e uma tarefa a ser cumprida. O ponto de partida é Deus-Pai que envia o Filho e o Espírito Santo, e que enviam à comunidade, destinatária e protagonista do anúncio do Evangelho. Os membros da comunidade, então, são convidados a sair e ir ao encontro dos outros irmãos e irmãs, até os confins do mundo. O ponto de chegada é a alegria da vida plena no Reino de Deus. A tarefa é anunciar a proximidade desse Reino anunciado, convidando as pessoas a se tornarem discípulos de Jesus, seguidores do seu Evangelho e anunciadoras do seu Amor.
Mas o termo latino, missio, quer dizer também “libertar”, “deixar andar”, “soltar”: o envio tem tudo a ver com liberdade e libertação. Esse sair para anunciar o Reino de Deus precisa “andar solto”. As estruturas, muitas vezes, prendem o Evangelho. As amarras institucionais não soltam a missão nem os missionários pelo mundo afora: há sempre uma “necessidade” que prende a missão “aqui”, interrompendo o fluir da Graça da alegria do Evangelho. O Espírito, ao contrário, é como um rio: precisa ir à procura do mar, pelos caminhos que só Deus conhece e que até podem parecer fora da lei e dos trilhos de nossa compreensão.
A Igreja não é feita para ficar apenas constituída em suas instituições, em seus assentos e em suas estruturas: ela foi criada para estar em movimento, pegar fogo e se lançar ao mundo ad gentes. Essa é sua natureza: sua razão de ser é estar em saída.
Mas esse sair não é somente um deslocamento aventureiro para “pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa” (EN 19); nem em uma intensa ação de visita a famílias e comunidades pelos cantos mais remotos de nossas áreas missionárias; nem simplesmente trilhar veredas pelos caminhos do mundo pluricultural, encarando os desafios de uma sociedade cada vez mais globalizada e tecnocrática.
A saída falada pelo Documento de Aparecida e pelo papa Francisco é uma saída profunda, que toca as dimensões mais íntimas da vida dos discípulos missionários e da Igreja como um todo. Não é sair simplesmente para impor a nossa vontade e a nossa visão de mundo, querendo “organizar” o mundo dos outros. Isso não é missão: é dominação. Não é sair simplesmente para estender a nossa influência na sociedade secularizada para agregar mais adeptos à nossa instituição. Também isso não é missão: é proselitismo. Não é somente sair com as boas intenções de fazer do mundo uma só família e ser solidário com os mais pobres e buscar, com isso, uma realização pessoal. Da mesma forma, isso não é missão: é autocomplacência.
A saída missionária exige purificação, atitude penitencial e uma profunda conversão: “impõe-se uma conversão radical da mentalidade para nos tornarmos missionários” (RMi 49). Por isso, necessitamos de uma ação insistente, paciente e participativa de mudança de mentalidade, para que surjam novas maneiras de pensar, de agir, de acreditar, de caminhar, de sonhar e, assim, semear continuamente a esperança do Evangelho no meio de todos os povos.
Mais do que isso, a missão, no seu conceito e na sua prática, muda radicalmente a perspectiva da saída. Essa mudança consiste em passar da visão de missão como “expansão” à missão como “encontro”. Isso é contrário àquela visão que vê as pessoas para que essas sejam, de alguma forma, catequizadas, “redimidas” ou “salvas”, tal como “objetos” ou “alvos” da ação eclesial. A prática contemporânea da missão transforma-se profundamente ao tentar compreender cada pessoa como o “outro” a ser encontrado. Missão, portanto, não é apenas um fazer coisas para pessoas. É, em primeiro lugar, ser companheiro dos pobres (cf. DAp 398) e ser hóspede na casa do outro.
O encontro com Jesus Cristo é proporcionado pela maneira com a qual nos aproximamos e encontramos cada pessoa. “Na América Latina e no Caribe – diz o papa Francisco – existem pastorais ‘distantes’, pastorais disciplinares que privilegiam os princípios, as condutas, os procedimentos organizacionais, sem proximidade, sem ternura, nem carinho. Ignora-se a ‘revolução da ternura’ que provocou a encarnação do Verbo. Há pastorais posicionadas com tal dose de distância que são incapazes de conseguir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos. Esse tipo de pastoral pode, no máximo, prometer uma dimensão de proselitismo, mas nunca chega a conseguir inserção nem pertença eclesial. A proximidade cria comunhão e pertença, dá lugar ao encontro. A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro”.
Sair, portanto, é um processo profundamente pascal, uma passagem que nos transforma e nos converte em discípulos e discípulas de Jesus a partir de um tempo crítico de peregrinação rumo ao mundo do outro. É uma viagem necessariamente para fora e para dentro de nós mesmos. A missão autêntica, seja ela vivida como processo psicológico, sociológico ou geográfico, implica sempre vida, morte e ressurreição.
Missão é partir (Dom Helder Câmara)
Missão é partir, caminhar,
deixar tudo, sair de si,
quebrar a crosta do egoísmo
que nos fecha no nosso eu.
É parar de dar voltas ao redor de nós mesmos,
como se fôssemos o centro do mundo e da vida.
É não se deixar bloquear nos problemas
do pequeno mundo a que pertencemos:
A humanidade é maior.
Missão é sempre partir,
mas não é devorar quilômetros.
É, sobretudo, abrir-se aos outros como irmãos,
descobri-los e encontrá-los.
E, se para encontrá-los e amá-los
é preciso atravessar os mares
e voar lá nos céus,
então missão é partir
até os confins do mundo.
Leia também: A alegria do Evangelho para uma Igreja em saída – Dom José Antonio Peruzzo
* Padre Estêvão Raschietti, SX, é missionário xaveriano e diretor do Centro Cultural Conforti em Curitiba (PR). Publicado no SIM n. 1 – jan – mar. de 2017.