Por: Zuleica Aparecida Silvano*
O texto bíblico de Lc 24,13-35 precisa ser lido em seu contexto situacional e literário, posto todo relato ter uma função específica a ser respeitada. Confira o artigo da Conferência de abertura do 5º Congresso Missionário Nacional, realizado em Manaus, 10 a 15 de novembro de 2023.
O relato da aparição do Crucificado Ressuscitado salienta o escândalo da cruz, e purifica as visões deturpadas do messianismo e da salvação trazida por Jesus, o Filho de Deus; explica onde está Jesus ressuscitado, que parece ausente na vida cotidiana, e ressalta que o destino do anúncio não é só o interior da própria comunidade, mas é universal. Resgata o mais importante no seguimento missionário de Jesus: a transmissão do querigma; a experiência da convivência comunitária como lugar que alimenta a fé, fortalece a esperança, e envia pessoas até os confins da terra, para anunciar a palavra salvadora a todos e todas; e que se expressa no amor, na solidariedade, na irmandade.
O relato começa indicando o tempo, “naquele mesmo dia”, isto é, o dia UM: dia que remete para uma nova criação, a geração eterna do Verbo, o Domingo, o dia da unidade do tempo, por isso é UM. O narrador afirma que são dois discípulos, o número exato para um testemunho. Um é nomeado: Cléofas. O outro discípulo, sem nome, pode ser qualquer um ou uma de nós, pode ser homem ou mulher, a esposa de Cléofas, ou um amigo. Conforme Lucas, esses dois discípulos são pessoas que percebem o fim de suas esperanças, queriam uma restauração nacional, talvez um Messias-rei, que recuperasse a eleição de Israel e sua importância para as nações. Tais discípulos ainda não tinham uma concepção universal da salvação de Jesus Cristo.
Não era fácil pensar no messias crucificado. Era absurdo que um projeto pleno de defesa da vida, de amor, de manifestação por meio de um enviado de Deus, com obras poderosas e com a revelação da Palavra divina, acolhido por uma multidão, fosse rejeitado pelas lideranças do povo. Os dois discípulos reconhecem a importância de Jesus, sabem quem ele é, mas talvez não tenham visto o sentido profundo do projeto de Deus-Pai, nem a forma como Deus escolheu para se revelar: na vida de Jesus, o Crucificado, por meio do escândalo da Cruz.
Após descrever os personagens e sua realidade interior, Lucas, pela primeira vez, usa um verbo de “saída” e uma indicação de lugar e finalidade: “iam para um povoado chamado Emaús”. “Iam”, estavam a caminho, porém não há um ”ir ao outro”, um sair missionário, e sim uma “’fuga” frustrante; é o abandono da comunidade, o desprezo aos sinais de revelação de Deus. Os dois discípulos caminham juntos, em uma conversa amigável (homiléõ), que acaba em discussão violenta (syzëtéo). Há uma divisão entre eles, não concordam com a posição um do outro. Estão transtornados e afetados em suas esperanças, levam amargura no coração, divisão, tristeza. É uma discussão, sem escuta! Um fugir, não um caminhar! Jesus entra nesse cenário de discórdia e caminha na estrada da “fuga”, aproxima-se deles, segue seus passos, na caminhada sinodal com os discípulos. Vai ao encontro e acompanha o ritmo deles.
Os discípulos então “detiveram-se” e, mesmo com o rosto triste, resolveram falar das expectativas e sonhos frustrados, das visões do Messias e da incapacidade de ver os sinais da revelação do Ressuscitado no anúncio às mulheres. Nesse contexto, os discípulos citam o querigma, contudo, uma coisa eles não acreditam: no anúncio das mulheres que Jesus está vivo.
Com a escuta de Jesus, o diálogo começa, mas o novo surge somente porque os discípulos tiveram a capacidade de incluir o estranho, o diferente, o desconhecido; e tiveram também a humildade, não só de acolher com empatia e atenção a ele que interrompeu a conversa, sem “saber nada do que está acontecendo”, mas também pela disposição em escutar o desconhecido, sem preconceito, crítica, arrogância ou rejeição.
Após escutar os lamentos que vêm das feridas expostas, o peregrino desconhecido relê os fatos e a frustração à luz do mistério pascal e das Escrituras. Jesus é a exegese de Deus e dá a chave interpretativa para os fatos narrados pelos discípulos: as Escrituras. Essa compreensão só precisa de abertura de coração e mudança de mentalidade, pois supõe a acolhida ao amor de Deus manifestado em Cristo. Amor que liberta, penetra os corações e faz nascer uma visão nova do Deus vivente.
Todo diálogo supõe assumir o risco de estar juntos, de “deixar-se afetar”, que não é um mero comover-se, mas é acolher a diversidade do outro, transformar, “mover o chão onde se pisa” das seguranças, das convicções. Trata-se de permitir que se adentrem em seu interior as vivências do outro, pois só assim se abrem novos horizontes de compreensão e modos de ler a realidade. Esses “outros modos” não são necessariamente melhores ou piores. Mas se os deixarmos penetrar em nós, com certeza enriquecerão nossos horizonte. Deixar-se afetar, supõe co-sentir e co-padecer, considerar a situação, a visão e os sentimentos de quem dialoga. O processo sinodal permite dizer que diálogo, escuta e sinodalidade são inseparáveis, pois se sinodalidade é caminhar juntos, escutar e dialogar consiste em pensar juntos.
Os três caminhantes chegaram ao povoado para onde “iam” e o “peregrino desconhecido” não pede pousada, vai prosseguir o caminho, mas é a partir do diálogo e da profunda acolhida do outro, que os discípulos “insistem”: “permanece conosco”. Aqui temos um verbo “entrar”, diferente do “sair”: o entrar em comunhão, o permanecer, o não ter pressa na convivência. O peregrino desconhecido é “hóspede”, abre fronteira à novidade, dá espaço ao inédito. O gesto de partir, repartir e entregar permite, aos discípulos, reconhecerem que o “estranho” que se colocou no meio deles, e foi acolhido, é o Ressuscitado. Só no reconhecer Jesus, eles admitem que o coração, sede de todas as decisões e capacidades humanas, fora afetado pelas palavras do peregrino e pela interpretação das Escrituras.
A expressão “arder o coração” é ter uma dor ou tormento, por isso, pode ser entendida como um coração afetado pela mudança de mentalidade, que não pode continuar “lento” e “amargurado”. Essa expressão pode representar o trabalho interno que o Espírito realizou no coração deles: é dolorido, é penoso, pois exige um coração sem fronteiras, aberto a todos. Só um coração envolvido pelo amor pode tocar um coração endurecido, amargurado, sem esperança, por causa da injustiça e das feridas.
É importante salientar três movimentos de Deus: o descer (na encarnação de Jesus); o ir ao encontro (o peregrino no caminho) e o caminhar com a humanidade em sua travessia (o percurso a Emaús). Jesus inverte o caminho dos discípulos e os faz voltar a Jerusalém, onde tem início a missão que se estenderá até os confins do mundo. A conversa desenvolve um diálogo que exige o movimento para fora. O encontro das vulnerabilidades faz possível o diálogo profundo, autêntico e capaz de gerar “novidade”. O diálogo cria um novo espaço onde são recriadas as palavras, experiências, emoções, situações e pontos de vista. Só assim é possível restaurar a identidade perdida (são discípulos); transformar a tristeza do fracasso em alegria; o caminho sem esperança em retorno e anúncio; a vergonha e o medo em testemunho e escuta. É o surgir de uma nova criação!
* Irmã paulina, Doutora em Teologia Bíblica (FAJE- BH), mestre em Exegese Bíblica (Pontifício Instituto Bíblico – Roma)