por Jaime Spengler *
Nossa sociedade passa por transformações que exigem reflexão e opções pastorais para que a Igreja continue realizando sua missão salvífica. “A Igreja é, na humanidade e no mundo, o sacramento do amor de Deus e, por isso mesmo, da esperança maior, que ativa e sustém todo autêntico projeto e empenho de libertação e promoção humana. (…) Ela é ministra de salvação, não só em abstrato ou em sentido meramente espiritual, mas no contexto da história e do mundo em que o ser humano vive, onde o alcançam o amor de Deus e a vocação a corresponder ao projeto de Deus” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 45).
As transformações da sociedade atingem a todos: os avanços tecnológicos, o fenômeno da globalização, a instabilidade e fragilidade dos critérios e dos valores, a submissão da esfera política aos interesses de grupos econômicos, o consumismo insaciável, o crescente individualismo satisfeito no seu bem-estar, a degradação do planeta, os fanatismos e radicalismos, o fundamentalismo religioso, a violência, o desemprego, o desrespeito pela sã tradição, o vilipêndio dos símbolos religiosos. O Estado tem a obrigação de garantir que cada um, no convívio social, possa viver suas próprias convicções, além de promover e garantir a paz e a justiça.
Conceitos indiscutíveis como os de autonomia, individualidade, emancipação, direitos humanos e solidariedade garantem um acordo humano básico e promovem o convívio numa sociedade de direito. Eles encontram suas bases na cultura greco-latina e judaico-cristã. O respeito, a defesa e a promoção da dignidade da pessoa pressupõem o cuidado da família, dos grupos, das associações, das expressões agregativas de tipo econômico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político, também religioso.
O princípio de subsidiariedade deve orientar as decisões do Estado, “protegendo as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores e solicitando estas últimas a ajudarem os indivíduos e os corpos intermédios a desempenhar as próprias funções. Este princípio impõe-se porque cada pessoa, família e corpo intermédio tem algo de original para oferecer à comunidade” (idem).
O propagado laicismo do Estado ignora que o impulso pela democracia nasceu na humanidade por inspiração cristã, que atuou como fermento da vida social e política dos povos (J. Maritain). O estado de espírito democrático encontra suas raízes na tradição cristã. O Estado deve “agir no respeito das legítimas liberdades dos indivíduos, das famílias e dos grupos subsidiários, criando deste modo as condições exigidas para que o ser humano possa obter seu bem verdadeiro e integral, inclusive o seu objetivo espiritual” (Ratzinger).
O laicismo militante ignora o papel da tradição cristã na constituição da base cultural comum dos estados democráticos de direito. Esquece que a atividade política pressupõe ideias, representações, expectativas e valores.
No contexto de uma sociedade pluralista e democrática, a Igreja participa dos debates, buscando a formação de um consenso básico, imprescindível para o desenvolvimento de uma autêntica democracia. Ela não pode agir de forma simplista, ingênua, moralizante! Urge superar a distinção entre uma ética laica e uma ética religiosa.
Neste momento difícil da história nacional, em que tantas pessoas parecem ter perdido a esperança num futuro melhor por causa dos enormes problemas sociais e de uma escandalosa corrupção, os discípulos do Crucificado-Ressuscitado, a partir do Evangelho, são chamados a ser sinais de esperança, colaboradores na construção de uma sociedade mais justa e fraterna para todos.
* Dom Jaime Spengler é arcebispo metropolitano de Porto Alegre (RS) e presidente da Comissão para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada da CNBB.