“Cuidado com a hipocrisia na Igreja: é uma peste!” E cuidado também com todos aqueles jovens que “querem entrar no seminário porque sentem que são incapazes de se virar sozinhos no mundo”. Se forem particularmente “diplomáticos” ou “mentirosos”, é melhor convidá-los para voltarem atrás. “Os melhores”, no entanto, que “os superiores os mandem à periferia”. Esse é o seu lugar.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 02-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
São alguns flashes da longa conversa do papa Francisco nessa terça-feira com um grupo de noviços e pré-noviços salesianos, com os quais ele se encontrou privadamente na Casa Santa Marta, perto do meio-dia. O encontro não aparecia na agenda do pontífice, mas foi revelado no Facebook com uma “transmissão ao vivo” de um dos convidados presentes na residência vaticana.
O grupo era grande: os noviços vinham, além da Itália, também da Albânia, Croácia, Malta. E havia também um “dom” da Síria: Michel, noviço que, de joelhos, recebeu a bênção do pontífice pela “amada e martirizada Síria”.
Quem os apresentou foi o padre Guido Enrico, encarregado pela formação na Itália, que agradeceu ao papa por ter aceito a proposta desse encontro que “se liga idealmente” à visita que Francisco fez aos salesianos em Valdocco, na Basílica de Santa Maria Auxiliadora, durante a etapa em Turim de 2015. De presente, o padre Guido entregou ao bispo de Roma uma medalha cunhada em 1885 pelo primeiro sucessor de Dom Bosco.
“Obrigado por terem vindo. Quando eu vi esse pedido, eu disse: ‘Os salesianos? Façam-nos vir!’”, começou o papa, antes de iniciar o diálogo todo de improviso, que durou cerca de 50 minutos e marcado por algumas perguntas dos presentes. “Eu não sei o que dizer a vocês. É melhor que vocês façam perguntas, para eu não dizer alguma bobagem”, brincou Francisco.
Ele relembrou a sua juventude e a escola elementar em um colégio dos salesianos, “onde eu aprendi o amor à Nossa Senhora”, depois os estudos de química na universidade “que a minha mãe queria que eu terminasse”, mas que, ao contrário, interrompeu seguindo a vocação sacerdotal: “Meu pai, em vez disso, estava mais contente”.
A propósito da família, Bergoglio não esqueceu os parentes piemonteses: “Somos muito ligados. Eles foram à Argentina, nós fomos encontrá-los. Quando eu vinha para os sínodos ou para as reuniões no Vaticano, eu dava um pulo para ir encontrá-los e visitava as duas basílicas”, contou.
Depois, respondeu às perguntas. Por exemplo, a do siciliano Pe. Marcello, que pediu algumas sugestões para a “delicada tarefa de acompanhar os jovens no discernimento vocacional”. O papa respondeu diretamente: “Os critérios são normais. Cuidado com aqueles jovens com cara de imagenzinha”, disse. “A esses eu não peço nem o Pai Nosso. Alegres, esportivos, normais. Que saibam trabalhar. Se estudam, que saibam estudar. Que assumam as suas responsabilidades.”
O importante é “acompanhar” esses jovens, porque “no caminho há muitas surpresas de Deus ou que não são de Deus. É preciso estar atento e ajudá-los a olhar essas surpresas na cara. Se forem dificuldades, olhá-las na cara. E ajudá-los a afastar toda forma de hipocrisia. Esta é uma peste: a hipocrisia na Igreja, a hipocrisia do ‘digo uma coisa e faço outra’… A hipocrisia da mediocridade, daqueles que querem entrar no seminário, porque sentem que são incapazes de se virar sozinhos no mundo.”
“Se você encontrar um que seja um pouco diplomático demais, fique atento. Se você encontrar um que seja um mentiroso, convide-o a voltar para casa.” Cuidado também “a como rezam”, recomenda o pontífice: não adiantam orações longas e artificiosas, mas uma oração “simples”, como “a que você aprendeu na sua casa, na primeira comunhão”, “uma oração normal, mas confiante”. “‘Mas, padre, eu estou irritado com Deus.’ Essa também é uma oração”, exclama o papa.
Com Luigi, de Salerno (“Os salernitanos são os mais alegres da Itália, você sabia?”), Francisco lembra o período do noviciado: “Era outra época: antes do Concílio… rígido… Usava-se a disciplina, com muitos traços pelagianos. Era uma coisa que, para aquele tempo, ia bem, hoje não vai. Embora haja pequenos grupos que gostariam de voltar a isso. Se eu os tivesse convidado hoje, viriam com a batina, talvez até mesmo com o saturno [chapéu eclesiástico]”, brinca o papa entre os risos dos seus convidados. Aos quais ele diz, dentre outras coisas, que as situações difíceis devem ser enfrentadas “com as calças”, isto é, “como homens, como o seu pai, como o seu avô”.
A Giorgio, de Turim, que pede uma “palavra sobre a santidade”, ele explica: “É muito simples a santidade: ‘Caminha na minha presença e sê irrepreensível’. Ponto. Essa é a melhor definição. Você sabe quem a deu? Deus a Abraão. Atualizando um pouco a coisa, eu acho que hoje também é possível ser santo. Há tantos na Igreja, tantos. Gente heroica, pais, avós, jovens. Os santos ocultos, como aqueles que pertencem à ‘classe média da santidade’, que não se veem, mas existem”.
Com Andrea, da inspetoria da Sicília, o papa volta a falar dos jovens. O noviço perguntava “o que levar” aos meninos e meninas de hoje e como encorajá-los, especialmente aqueles que moram nas “periferias”. “Quando eu falo de periferias, eu falo de todas as periferias, também das periferias do pensamento”, explica o papa. “Falar com os não crentes, agnósticos, essa é uma periferia, hein! Depois, há as periferias ‘sociais’, dos pobres…”. O convite, no entanto, é sempre o mesmo: “Ir lá”, exorta Francisco.
E dirige uma palavra aos superiores: “Escolham bem que enviar às periferias, especialmente as mais perigosas. Os melhores devem ir lá! ‘Mas este pode estudar, fazer um doutorado…’ Não, mande ele. ‘Lá tem a máfia…’ Mande ele. Às periferias, é preciso mandar os melhores”, afirma o pontífice.
Quanto aos jovens, ele pede para “organizar atividades” concretas, que não se limitem ao “mundo virtual” e a “ensiná-los a ajudar os outros, os valores humanos da amizade, da família, do respeito pelos avós”. Em particular, o “respeito pelos avós”, que, confidencia Francisco, “é uma coisa que eu trago muito no coração”.
“Eu acho – continua – que estamos no momento em que a história nos pede mais que os jovens falem com os avós. É uma ponte… Estamos em uma cultura do descarte, e os avós são descartados. Hoje, tudo o que não serve é descartado. Vive-se na cultura do ‘usa e joga fora’, não?”
E não só os idosos, mas também “tantos jovens têm descartados”, observa o Papa Francisco, lembrando que, na Itália, apenas para dar um exemplo clamoroso, 40% dos jovens não têm trabalho.
“Os jovens, porém, têm tanta força”, que não sabem aonde canalizar. Ela se contrabalança com a “sabedoria” dos seus avós. Por isso, é necessário criar essa “ponte”, insiste o papa. E enumera entre as virtudes necessárias também a da “criatividade” que, afirma, é “uma graça a se pedir ao Espírito Santo”, para “dizer a palavra certa no momento certo”.
Depois, aos jovens, acrescenta o pontífice respondendo ao mesmo noviço, “também é preciso deixá-los com um pouco de fome, para que depois voltem a fazer outra pergunta”.
Na conclusão do encontro, o padre Guido Enrico lembrou as diversas “frentes” em que a congregação salesiana “é desafiada, provada”. Não só na Síria, onde os seguidores de Dom Bosco trabalham ativamente, mas também em outras áreas chagadas pela guerra e pelo terrorismo. O Iêmen, por exemplo, onde, no ano passado, o padre Tom Uzhunnalil foi sequestrado, durante o brutal assassinato de quatro Missionárias da Caridade. O religioso indiano tinha celebrado a missa com as irmãs e, depois, foi sequestrado. Desde então, não se têm mais notícias dele, com exceção de alguns vídeos que apareceram na web. “Não sabemos se ele está vivo ou morto”, diz o padre Enrico ao papa, que responde assegurando a sua oração e recordando que “hoje na Igreja há mais mártires do que nos séculos passados”.
O encontro concluiu com o canto do Regina Coeli e uma oração à Virgem, junto com o pedido de costume: “Não se esqueçam de rezar por mim”.
Fonte: IHU