A nova diretora nacional das POM do Brasil, Ir. Regina da Costa Pedro, missionária da Imaculada (PIME), fala sobre o fundamental papel das mulheres nos espaços de decisão na Igreja.
SIM – Como acolheu a notícia da nomeação da Santa Sé indicando seu nome para assumir a direção nacional das POM do Brasil?
Ir. Regina – Acolhi a notícia com surpresa e alegria. No mês de julho 2022, durante o Congresso Missionário Nacional de Seminaristas, na Paraíba, Dom Maurício Jardim, diretor precedente, me acenou sobre essa possibilidade e perguntou se meu nome poderia ser indicado entre aqueles que iriam para Roma. Eu aceitei que isso fosse feito, mas sem nenhuma pretensão de ser escolhida. Pensei que seria um sinal bonito da Igreja no Brasil, ao cogitar a possibilidade de ter uma mulher à frente da Instituição. Pensei que isso poderia abrir caminho para outras, no futuro, mas não pensava que seria eu.
Em outubro do ano passado, estava prestes a terminar o segundo mandato na coordenação provincial da Província das Missionárias da Imaculada, com sede em São Paulo. Foram seis anos intensos, com momentos bonitos, mas também com os desafios que muitas Congregações encontram hoje: poucas vocações, recursos econômicos limitados, envelhecimento dos membros. Apesar dessas dificuldades, o carisma missionário se mantém vivo entre nós e se manifesta, no desejo de concretizar nosso ser-missão com uma vida comprometida pelo anúncio do Evangelho na periferia e fronteiras. Por isso mesmo, já pensava na possibilidade de voltar à África ao terminar meu mandato provincial. Tinha decidido escrever uma carta para a coordenadora geral da Congregação, tão logo terminasse a novena que fazemos para a solenidade da Imaculada.
Estava no segundo dia da novena quando recebi o telefonema da secretária do Núncio, a comunicar minha nomeação. Eu logo me recordei que, há cinquenta e um anos, Pe. Gaetano Maiello e Ir. Annamaria Fornasiero estavam à frente da fundação das POM no Brasil. Eu pertenço à mesma Congregação que eles e isso me faz sentir como se estivesse “voltando para casa”. Percebi uma continuidade histórica da presença de Deus que guia a história. Isso me alegrou o coração e me deu mais confiança. Compreendi também que Deus respondia meu desejo de continuar colocando a vida a serviço da sua missão… não do jeito que eu pensava, é verdade.
SIM – Antes de assumir esta missão nas POM do Brasil, fale um pouco sobre as suas experiências missionárias com a vida religiosa junto às Irmãs da Imaculada (PIME).
Ir. Regina – Ano passado eu celebrei 40 anos de consagração missionária. Eu entrei muito jovem, em janeiro de 1979, tinha acabado de completar 18 anos. Aos 22 vivi a experiência linda ser consagrada e enviada, passando a fazer parte da Congregação Missionárias da Imaculada. O que me atraiu nesta família religiosa desde o começo foi o fato de serem missionárias ad gentes. Fui “fisgada” quando ouvi Ir. Benedetta, uma Missionária da Imaculada que trabalhava na nossa Paróquia, falar sobre sua experiência em África. Desde os 15 anos eu sonhava com a consagração, mas tinha muitas dúvidas em relação à escolha da Congregação. Quando descobri a missão além-fronteiras disse a mim mesma: “É isso que eu quero!”. Anos depois li uma frase de Ir. Igilda Rodolfi, uma das nossas fundadoras, que pode traduzir bem a experiência daquele momento: “Vida missionária! Existe algo de mais bonito sobre a terra?”.
Realmente a vida missionária é bonita, seguir Jesus, o missionário do Pai, o bom semeador da Palavra, é muito bonito. Nestes 40 anos eu vivi em vários lugares do Brasil. Sou paulistana, da Zona Norte da capital Paulista. Meu primeiro envio foi para o interior de São Paulo, em Assis, em uma periferia habitada por cortadores de cana – os “bóia-frias” – onde nossa pequena comunidade morava em uma casa de madeira, atrás da igreja. As irmãs eram responsáveis por toda a animação pastoral daquela imensa e abandonada periferia. Depois, atravessei o Brasil, e fui atuar em outra periferia na cidade de Macapá. Ali conheci também as comunidades ribeirinhas, nos vastos interiores que faziam parte da nossa paróquia. Finalmente, em 1988, foi o momento de partir para África, na República dos Camarões. A preparação foi desafiadora: deixar meu país e ir para a França aprender o novo idioma; ter a possibilidade de conhecer a Itália e me encontrar com a fundadora, que ainda estava viva, e com várias das primeiras irmãs que haviam iniciado a Congregação em 1936. A maioria delas tinha voltado de alguma outra parte do mundo: Índia, Bangladesh, Hong Kong, África… era muito bom ver aquelas que tinham me precedido e perceber ainda paixão e entusiasmo em seus olhos. Falar sobre os anos vividos na República dos Camarões mereceria um capítulo à parte. Vivi ali somente oito anos, em dois momentos diferentes. Bem menos do que eu gostaria. Tentar resumir? Foram anos marcados por encontros muito profundos: encontro com novas culturas, com uma Igreja particular diferente, com desafios que eu nem tinha imaginado. Foi um tempo de descoberta! A vida missionária faz cair as máscaras e ajuda a ir acolhendo o essencial. Foi um tempo que me ajudou muito a aprofundar meu relacionamento com Deus e a descobrir que a missão é dele. Eu era jovem e saudável quando cheguei em África. No primeiro ano experimentei a fragilidade física com as inúmeras malárias, o tifo, a hepatite, a anemia… foi nesta situação que descobri que não tinha sido enviada somente para “fazer” muita coisa, confiando na força da minha juventude. O Dono da missão sabia, melhor que eu, para o que eu tinha sido enviada e qual era a melhor maneira de eu colaborar na missão dele. Foi uma experiência de despojamento, dura, mas muito bonita ao mesmo tempo. Fui chamada da República dos Camarões para a Itália, onde permaneci por 8 anos para os estudos. Voltei cheia de entusiasmo, pensando que desta vez ia para ficar. Após 4 anos me chamaram novamente para colaborar com as atividades no Brasil: formação dentro e fora da minha Congregação, animação pastoral, assessorias. Nesta época morei em São Paulo e em Feira de Santana. Novamente fui chamada para a Itália onde escrevi a biografia de uma das fundadoras, Igilda Rodolfi, colaborei com a revisão das Constituições da Congregação e iniciei o doutorado em teologia espiritual com o desejo de analisar a experiência espiritual missionária na vida das fundadoras. Antes de concluir todos estes projetos fui chamada novamente para o Brasil para assumir a coordenação da Província, serviço que concluí em março deste ano.
SIM – Como tem sentido a abertura motivada pelo Papa Francisco para a Igreja ter mais mulheres em postos de decisão nas estruturas da Igreja?
Ir. Regina – Há uns dias li a notícia da nomeação de Ir. Helen Alford, O.P., para presidir a Pontifícia Academia das Ciências Sociais. Cito esse exemplo só para dizer que Papa Francisco continua nesse movimento de abertura e reconhecimento das mulheres, iniciado no seu pontificado. A Igreja, desde o século XIX, tem feito muitos pronunciamentos reconhecendo a dignidade da mulher. Basta recordar, só no âmbito dos documentos missionários, a Encíclica Maximun Illud de 1919, onde o Papa Bento XV reconhece a colaboração eficaz das mulheres, desde o início da Evangelização, na difusão do Evangelho. A grande novidade que Papa Francisco traz é fazer com que as palavras sejam acompanhadas por escolhas claras, coerentes e consistentes. A abertura às mulheres a estruturas que antes eram inacessíveis precisa ser vista dentro de um contexto maior. O contexto da igreja em saída, de uma igreja sinodal, onde todos cristãos são chamados a caminhar juntos, rumo a todo tipo de periferia que necessita do anúncio da alegria do Evangelho. Sem esquecer o combate claro ao clericalismo – doença que pode atingir todo e qualquer batizado – e a todo tipo de abuso de consciência, poder e sexual. A abertura à mulher é, de certa forma, uma volta às origens ao exemplo de Jesus e das comunidades da Igreja nascente. É sinal da recuperação da dignidade do cristão e da cristã leiga na Igreja.
SIM – Quais os desafios em ser a primeira mulher a assumir essa função no Brasil?
Ir. Regina – Eu estou chegando! Embora a nomeação tenha ocorrido em novembro do ano passado, só consegui chegar definitivamente em Brasília no dia 18 de março deste ano. Desde então, minha impressão tem sido muito positiva. Encontrei uma equipe muito acolhedora, da secretária administrativa aos secretários das POM, com e entre os demais colaboradores da casa. Tive a possibilidade de participar de reuniões dos Conselhos Pastoral e Permanente da CNBB, assim como da Assembleia Nacional do COMINA e do Seminário de Missiologia. Falo dessas ocasiões para dizer que já foi possível me encontrar com cristãos leigos de diversas partes do Brasil, bispos, sacerdotes, diáconos permanentes, leigos e leigas consagrados. Fui bem acolhida. Percebi que alguns setores tinham até a expectativa de haver a nomeação de uma diretora. Acredito que as pessoas estão curiosas para saber o que vou fazer e, ao mesmo tempo, com grande desejo de colaborar e se envolver com os diversos processos de formação e animação missionárias no Brasil. O fato de ser a primeira nomeada carrega bastante responsabilidade. É evidente que as mulheres que encontrei se sentem representadas por mim. E não é possível esquecer que sou também a primeira negra no Brasil a realizar esse serviço. Tal fato traz a honra da representatividade e o ônus da responsabilidade. Ainda estou vivendo o momento de “lua de mel”, mas acredito que terei pela frente os desafios que nós mulheres e, mulheres negras, enfrentamos desde sempre em uma sociedade machista e racista como a nossa. Mas me tranquilizo pelo fato de, hoje em dia, essas questões serem debatidas com maior abertura e, por isso mesmo, confio ser possível superá-las. Confio também na colaboração de tantas pessoas, homens e mulheres, fora e dentro das instituições da Igreja, que estão trilhando caminhos pessoais e institucionais que contribuem para essa superação.
SIM – Que passos ainda são necessários serem dados para que a Igreja assuma de maneira mais efetiva a sua essência missionária?
Ir. Regina – Não acredito que exista uma resposta fácil para uma questão tão complexa. Porém a resposta vai na direção daquilo que Papa Francisco chama de decidida conversão pastoral e missionária. Esta conversão toca cada pessoa, pois é preciso que cada cristão recupere sua identidade de discípulo missionário vivendo a transcendência, a saída de si, em duas direções. De fato, como discípulo cada cristão sai de si para o seguimento de Jesus e como missionário, sai de si para colaborar com a missão de Jesus, o enviado do Pai. Além disso, é necessário que, impulsionados por esta saída missionária, haja uma conversão das estruturas, deixando de lado costumes, estilos, horários e linguagem que, ao invés de colaborar para a evangelização do mundo atual, servem à autopreservação de si mesmas. Recuperar a identidade de discípulos missionários, conversão das estruturas com o estilo da sinodalidade. Acredito que estes sejam alguns dos passos necessários para que a Igreja assuma cada vez mais sua essência missionária.
SIM – Qual sua mensagem para as nossas comunidades de fé sigam animando a vida missionária?
Ir. Regina – Este ano caminhamos para a celebração do 5º Congresso Missionário Nacional, a ser realizado em Manaus dos dias 10 a 15 de novembro. O tema resume a mensagem que gostaria de deixar: Ide da Igreja local aos confins do mundo! Este é o mandato de Jesus, é preciso ir! E podemos ir ao nos abrirmos para as realidades próximas e distantes, na oração, na solidariedade, na vida doada em ações missionárias limitadas no tempo, ou que impliquem um compromisso para a vida toda. Mas esse ir só é possível se levarmos em consideração também o lema: “Corações ardentes, pés a caminho!” Somente a experiência do encontro com Jesus Cristo, a certeza do seu amor misericordioso, motiva o compromisso missionário para que seja um alegre testemunho da Vida plena, de modo particular, onde a vida é ameaçada e desrespeitada.