Fratelli Tutti: vocação e missão

Por Pe. Francisco de Aquino Júnior*

A Encíclica do Papa Francisco “Fratelli Tutti – Sobre a fraternidade e a amizade social” é um convite para voltarmos ao essencial da fé e da missão da Igreja neste momento particularmente dramático da humanidade. Seu objetivo fundamental é “propor uma forma de vida com o sabor do Evangelho” (FT 1). Cada palavra é importante. Trata-se de uma proposta: a fraternidade e a amizade social não são um dado natural nem algo que se impõe, mas uma possibilidade a ser apropriada ou recusada pelas pessoas e pela sociedade. Está em jogo uma forma de vida: dinamizada pela lógica da fraternidade e da amizade, do encontro e do diálogo, do amor e da inclusão, da solidariedade e da justiça, a ser vivida tanto no âmbito das relações interpessoais, quanto no âmbito da sociedade ou das relações estruturais: economia, política, cultura, religião etc. Uma forma de vida com o sabor do Evangelho: é a dimensão social do Evangelho que não se restringe à interioridade das pessoas (conversão do coração), mas se concretiza também nas relações interpessoais e na estruturação da sociedade (transformação da sociedade) ou na dimensão evangélico-espiritual da fraternidade e amizade social, nas quais se concretizam e se expressam em nossa comunhão e participação no mistério de Deus que é Amor.

Certamente há muita coisa importante na vivência da fé e da missão evangelizadora da Igreja que não se pode descuidar. Mas o essencial e fundamental é a vivência da fraternidade e a missão de fermentar e iluminar o mundo com essa “forma de vida com o sabor do Evangelho”. Tudo na Igreja deve estar em função disso, sem esquecer jamais que os sacramentos são sacramentos da fé, que a doutrina é doutrina da fé, que os carismas e ministérios e toda a organização e gestão institucionais estão a serviço da fé e da missão evangelizadora da Igreja e que a fé é “uma forma de vida com o sabor do Evangelho” que tem como marca ou característica fundamental a fraternidade. Por isso mesmo, ao propor e convocar todas as pessoas para a vivência da fraternidade universal, Francisco de Roma, em profunda sintonia com seu irmão gêmeo de fé, Francisco de Assis, conduz-nos ao centro do Evangelho de Jesus Cristo: “todos irmãos”, e recorda-nos o critério fundamental do ser cristão: “Nisso conhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns para com os outros” (Jo 13,35). A vida cristã ou o modo cristão de ser humano consiste precisamente na fraternidade universal que brota da filiação divina.

A fraternidade é mais que uma prática moral. É nossa forma de participação no mistério de Deus que é amor ou de vivência da filiação divina: Nossa entrega confiante a Deus-Amor se dá na (e se mede pela) vivência do amor fraterno. Não por acaso, João insiste tanto na inseparabilidade do amor a Deus e do amor ao próximo (1Jo 3) e Paulo nos recorda que “em Jesus Cristo, o que vale é a fé agindo pelo amor” (Gl 5,6). No fundo, esse “dinamismo de abertura e união para com as outras pessoas” não é outra coisa senão “a caridade infundida por Deus” em nós (FT 91). É Deus mesmo agindo/amando em nós: Deus que é Amor amando-nos e amando em nós ou por meio de nós (1Jo 4,7-21). Daí seu caráter espiritual no sentido mais estrito, radical e pleno da palavra.

Isso é tão claro na Escritura que é difícil alguém negar abertamente. Em princípio, todos estão de acordo com isso. Mas quando a gente olha para a vida concreta de nossas comunidades, não é preciso fazer muito esforço para perceber que no centro da vida de nossas comunidades realçam a reprodução e o crescimento institucional (culto, doutrina, templo, dízimo, ministros, fiéis etc.), em vez da vivência e da propagação da fraternidade. Sem falar que muitas vezes nossas comunidades se tornam lugar de preconceito, intolerância, ódio e até aversão aos direitos humanos. O grande desafio é fazer da fraternidade o centro da vida de nossas comunidades: fraternidade entre os membros da comunidade, fraternidade com os que não são de nossa comunidade e, sobretudo, fraternidade com os pobres, marginalizados e sofredores da sociedade.

Falar em fraternidade é falar de nossa vocação primeira e de nossa missão fundamental. Somos chamados a viver na fraternidade (vocação) e a construir um mundo fraterno (missão). Essa é a pedra de toque de nossa fé e da missão da Igreja no mundo. Não esqueçamos que “a estatura espiritual de uma vida humana é medida pelo amor” – “o maior perigo é não amar” (FT 92)! Voltemos, pois, ao essencial: “todos irmãos”! Essa é a marca fundamental da nossa fé. Esse é o desafio/imperativo maior de nosso mundo. Esse é o clamor/apelo que vem dos caídos à beira dos caminhos. Esse é o critério ou a condição para herdar a vida eterna (Lc 10,25-37).

* Presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte (CE); Professor de Teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)

 

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