de André Ricardo Panassolo *
Quando senti a mão de Deus segurando a minha, deixei-me conduzir por Ele. Abandonei as resistências para viver uma aventura e um romance em Sua companhia que me basta. Não vim a São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, por coragem. Até porque não a tenho. Vim por fé!
Quando senti Sua mão por entre a minha, compreendi que seria incapaz de fazer esse caminho sozinho. Sabia de todo o sofrimento que me esperava. Aliás, não sabia…
Imaginava. Há muita gente sofrida esperando, ao menos, que se sopre com ternura sobre suas feridas. Como poderia esperar participar da glória do Senhor, sem participar de seu sofrimento? O missionário faz o caminho da via crucis. Não é o caminho da dor, mas o caminho do amor. Não é o sofrimento pelo sofrimento, mas o sujeitar-se ao sofrimento por amor a Deus na pessoa dos mais sofridos.
Dentre as tantas experiências que têm tocado o meu coração e engrenado o meu processo de conversão, está uma vivida na Sexta-feira da Paixão. Ao contrário das nossas Sextas-Feiras Santas de igrejas lotadas, aqui elas são vazias. Presidi na matriz. Não havia mais do que 40 pessoas na celebração. Foi a experiência do Calvário. Aos pés da Cruz, uns poucos. Após ter adorado a Cruz do Senhor, voltei à cadeira presidencial. No meio da fila estava uma senhora cega, acompanhada de seu filho. Ao se aproximar do Crucificado, tentou ajoelhar-se, com muita dificuldade, amparada pelo filho. Ao aproximar-se da Cruz, uma das cenas mais ternas que já vi, que me levou às lágrimas.
Presa à escuridão de seus olhos, como Maria naquela sexta-feira, essa senhora foi inclinando-se lentamente e “procurando” a cruz com o seu rosto. Ao senti-la, ao invés de beijá-la, acariciou-a com sua face, terminando sua adoração com um doce, materno e devoto beijo. Foi impossível conter a emoção. Perguntei à ministra qual era o nome daquela senhora. E para a minha surpresa, ouvi de seus lábios o nome Maria.
Aquela senhora, para mim, naquela sagrada Sexta-Feira foi Nossa Senhora. A cega Dona Maria é semelhante à Maria do Gólgota. Ambas entendem de dor, mas entendem muito mais de fé.
Envergonhei-me de minha fé, alimentada mais por livros do que por simples amor e intimidade. Envergonhei-me de mim, por preferir assistir o sofrimento escondido em meio aos espectadores daquele fatídico dia a ter a ousadia de Maria e João em se fazerem próximos à agonia do Salvador. Foi nesta Sexta-feira da Paixão, no dia 14 de abril, que uma cega me ensinou a contemplar a história da Salvação com os olhos de Nossa Senhora. Não apenas como alguém que sabe de tudo o que ocorreu. Mas como alguém que sente o que está acontecendo.
A Vigília Pascal também foi uma experiência inusitada. Igreja lotada. Por incrível que pareça, mais crianças e jovens do que idosos. Iniciada a celebração Eucarística, acabou a energia de toda a cidade, devido a uma forte tempestade. Vivemos nossa Páscoa como os primeiros cristãos: às escuras e à luz de velas. Nunca em minha vida uma noite foi tão iluminada: o Círio tornou clara toda aquela escuridão, quando todas as demais velas foram por ele alimentadas. A capela tornou-se um ponto de luz no bairro escuro.
Não há como não ser grato a Deus quando até os contratempos falam d’Ele. Não há como não sentir Deus, quando até mesmo os detalhes o evidenciam. Não há como não ouvir a Deus, quando o próprio silêncio é sua voz.
O Senhor me trouxe até aqui para me proporcionar uma experiência íntima com Ele. Aos poucos me despe de meus conceitos para que eu O descubra tal como Ele é. E eu, que antes fui conduzido por suas mãos, agora estou em suas mãos, para que faça de mim o que bem entender. Se esta mão não me guiar, me perderei. Se esta mão não me guardar, perecerei.
É preciso ir onde Ele mandar para poder ganhar o lugar que só Ele pode dar. Ninguém está só nessa missão. O próprio Cristo assegurou isso: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20b).
Para o missionário, bastam essas duas certezas por Jesus prometidas: nesta vida, a sua presença, e depois desta vida, o prêmio da vida eterna. Avante!
* Padre André Ricardo Panassolo, missionário da diocese de Amparo (SP) em São Gabriel da Cachoeira (AM).