Padre Mario Filippi, missionário fidei donum da arquidiocese de Trento na Itália relata como vivenciou a missão, em especial seu Ano Sabático vivido em Taracuá, na beira do Rio Waupés, afluente do Rio Negro, na diocese de São Gabriel da Cachoeira (AM). Lá vivem povos indígenas e comunidades ribeirinhas com a floresta perfeitamente conservada. Após 42 anos de missão no Brasil, padre Mario regressou à Itália. Confira seu testemunho.
Quando manifestei ao dom Edson Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), minha proposta de fazer um Ano Sabático, estava em Barcelos: era junho de 2015. Eu já tinha completado 75 anos de idade e tinha renunciado à missão de pároco, conforme manda o Direito Canônico.
Dom Edson estava expondo a situação de Taracuá onde, há mais de ano, não havia pároco. Acrescentou que os padres não gostavam muito de trabalhar naquela paróquia, pois não havia energia elétrica, nem telefone, nem internet. Foi neste instante que passou um relâmpago pela minha cabeça: “Eis um lugar ideal para fazer um Ano Sabático: estou pronto para ir”. Combinamos que ficaria em Barcelos até 08 de dezembro de 2015, festa da Padroeira. Então, junto com dom Edson, que estava novamente em Barcelos para as Crismas, viajei para São Gabriel e no dia 16 de dezembro para Taracuá.
Tendo acabado o tempo que me foi concedido pelo bispo de Trento, a minha diocese de origem, para trabalhar na diocese de São Gabriel da Cachoeira como padre fidei donum, depois do Natal voltei para a Itália. Foram 42 anos de missão no Brasil.
Taracuá é um lugar esplêndido, na beira do Rio Waupés, afluente do Rio Negro: os rios Tiquié, Ira, Conori, e Iuriri, onde estão localizadas algumas comunidades ribeirinhas, são de uma grande beleza, pela floresta ainda perfeitamente conservada.
Como foi meu Ano Sabático? Primeiro visitei as comunidades que há tempo não tinham mais a presença do padre, dos sacramentos e da missa. Ao mesmo tempo queria assumir mais conscientemente e coerentemente a minha vida, que já está chegando ao fim.
A graça de Deus foi grande, mas infelizmente, como sempre acontece, minha resposta foi bastante fraca: levo sempre comigo e em toda parte, meus defeitos, vícios e pecados e a conversão está longe de acontecer.
Os índios todos falam Tukano. Eu, seja pela minha idade, seja pelo fato que iria ficar somente um ano, seja porque os índios (exceto algum velhinho) também entendem e falam português, não me esforcei para apreender a língua deles. Esforcei-me mais para lembrar os nomes de cada um. Quanto à saúde, após um começo complicado, foi boa o tempo todo. O começo foi muito ruim pois tive um ataque do nervo ciático. Passei o Natal muito mal. Em seguida foi a próstata a incomodar, mas pelo resto do ano a saúde foi suficiente.
Durante o mês de janeiro, tempo em que tive que ficar de repouso por causa do ciático, aproveitei para ler alguns livros que encontrei por lá: “A Misericórdia” do Cardeal Walter Kasper; “A montanha dos sete patamares” de Tomas Merton; “A Imitação de Cristo” que nunca tinha lido; “Noventa e três” de Victor Hugo; “As sandálias do pescador” de Morris West; “Por quem os sinos dobram”, de Ernest Hemingway; “Capitães de areia” de Jorge Amado. E aproveitei para dedicar mais tempo à oração e à leitura da Bíblia.
O que mais me alegrou pastoralmente foram as três itinerâncias às 17 comunidades ribeirinhas nos meses de abril-maio, agosto, novembro. Na primeira, visitei todas as famílias para poder conhecer o povo. A segunda foi uma itinerância ‘batismal’, com reflexão e realização do Batismo. A terceira foi a itinerância da Misericórdia, encerrando o Jubileu. A itinerância é exigente, traz imprevistos e dificuldades, faz a barriga perder alguns quilos, mas traz muitas satisfações.
Na comunidade de Taracuá inicialmente visitei todas as famílias. Revisitei-as junto com Jorge Berto, um bom companheiro do tempo da ‘Vila Matadouro’, professor universitário de Veterinária em Chapecó. Visitei-as novamente depois da Páscoa, para a bênção pascal. Em junho aconteceu a Festa do Padroeiro, o Sagrado Coração de Jesus e o curso de Catequese Inculturada, assessorado pelo biblista Francisco Orofino, do CEBI, também com a presença de catequistas das paróquias de Yauaretê e Pari Cachoeira. Em setembro realizei uma semana de estudo bíblico sobre Lucas e Atos dos Apóstolos. Aproveitei algum tempo livre para o hobby da pintura. Pintei dois murais. Um ao lado do grande crucifixo que o padre Bruno trouxe da Itália. E outro na entrada, representando o Filho do Carpinteiro com José e Maria – a vida de Nazaré – em homenagem ao Irmão Charles de Foucauld, no centenário do seu assassinato. No dia a dia, atendi o povo como fazem os párocos.
Quanto à conversão, estou sempre recomeçando, sem enxergar melhoras. Desde sempre peço a Deus esta graça mas, até agora, nada. Creio que não acontece nada, porque as minhas súplicas não são sinceras. No fundo não quero me converter, porque quero continuar pecando. Bem diz o canto: “Mesmo que não queira, converte-me Senhor”. Mas, até agora…
Minha oração também é uma lástima. Dedico tempo, mas me sinto como um analfabeto que não apreendeu ainda os primeiros elementos, ou uma criancinha que ainda não apreendeu a colocar um pé na frente do outro. Minha oração gira em torno de mim mesmo. É uma oração muito autorreferencial. Precisaria abrir mais o leque, ter mais presentes os irmãos, a Igreja, o povo que Deus confiou ao meu cuidado pastoral. Me chamou bastante atenção o que escreve o papa Francisco: “Descobrimos assim, que interceder não nos afasta da verdadeira contemplação, porque a contemplação que deixa fora os outros é uma farsa” (Evangelli Gaudium, 281). Isto me faz relembrar que, quando o Sumo Sacerdote entrava no Santo dos Santos, levava sobre o éfode, o peitoral e no peitoral estavam cravadas doze pedras preciosas onde estavam gravados os nomes das 12 tribos de Israel. Assim, sempre se apresentava diante de Deus para interceder por todo o povo (Ex 28,29).
As distrações na oração são como o pão de cada dia, uma lástima! Me consolo com o que escreve o santo autor da ‘Imitação de Cristo’: “Oh! Como não sofro interiormente quando, meditando as coisas celestiais, minha oração é logo assaltada por um tropel de ideias carnais” (cap. XLVIII 5). Será que ainda vou ter tempo para remediar?
Enfim, estou chegando ao fim, ou quase ao fim. Medito seguidamente o que escreve o Salmista: “Mostra-me, Senhor, o meu fim e qual a medida dos meus dias, para eu saber quanto sou frágil” (Sl 39,5). E ainda: “Ensina-nos a bem contar os nossos dias, para termos um coração sensato” (Sl 90,12).
Às vezes eu penso; “Meus dias são como a sombra que se alonga, e eu vou secando, como a relva” (Sl 102,12), e invejo os justos que “dão fruto mesmo na velhice, são cheios de seiva e verdejantes” (Sl 92,15).
Poderei esquecer tudo o que vivi nestes 42 anos, os muitos rostos deste povo com quem convivi? Certamente estaremos sempre unidos: pela amizade, pelas lembranças e pela oração.
Faço minhas as palavras de Samuel ao se despedir do povo, para se retirar à ‘vida privada’: “Quanto a mim, longe de mim pecar contra o Senhor, deixando de rezar por vocês” (1 Sm 12,23).
Assim seja! Sentirei muita saudade, mas vamos em frente: a vida não volta atrás!
Assim vou repetindo: “Mostrai-me, Senhor, vossos caminhos, mostrai-me vossas veredas” (Sl 25,4).
* Padre Mario Filippi, missionário fidei donum da arquidiocese de Trento na Itália.