Por quem chorar?

Por Joel Portella Amado*

“Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos…” (Rm 12,2)

Abro os olhos para a vida e me deparo com a morte. Vejo os mais de 107 mil mortos pela Covid-19. Vejo as mensagens que pedem alimento para quem enfrenta a fome. Fecho os olhos e recordo as vítimas do racismo. Volto a abri-los e vejo uma criança de dez anos estuprada, ao que foi informado, repetidamente, tendo-se encontrado no aborto a solução. Diante de tudo isso, eu me pergunto: por quem chorar? Mas, ao mesmo tempo, eu me coloco a questão se as lágrimas possuem uma única direção, se o direito a ser chorado pertence apenas a uma pessoa ou um tipo de morte.

Choro, então, por todas as vítimas. Choro pelo bebê, cuja morte foi considerada a melhor das soluções. Choro pela menina-mãe, que, aos seis anos, como informam os noticiários, já tinha sua vida profanada por alguém que lhe deveria proteger. Choro pelos demais adultos que, em situações como aquela, não conseguem perceber que uma criança está sendo violentada. Choro pelas crianças abandonadas, algumas perambulando pelas ruas a pedir alimento e, com certeza, afeto.

Choro por quem patologicamente se aproveita de uma criança. Choro por quem vergonhosamente se enriquece com o tráfico de drogas e pessoas ou por meio da corrupção em suas variadas formas.

Choro pelos inúmeros brasileiros que não encontram atendimento nos hospitais porque lhes faltam respiradores e utis. Choro pelos desempregados, pelos famintos, pelos indígenas desrespeitados em sua história e sua saúde, pelos sem casa, sem escola, pelos deprimidos, os sem paz nem esperança. Choro pelos que são perseguidos e agredidos em razão de suas crenças, pelos que são obrigados a largar suas pátrias e se refugiar onde a morte não esteja tão próxima. Choro porque me dizem que tenho que escolher por quem chorar.

Choro, enfim, por não contribuir como deveria para que não nos satisfaçamos com soluções imediatas para problemas crônicos. Não podemos nos dar por satisfeitos porque postamos nossas opiniões nas redes sociais, enquanto aguardamos outras notícias para com elas interagir e deixar a vida seguir seu curso. Choro para que não anestesiemos nossas consciências achando que a morte é a solução para a morte. Quando um povo se dá por satisfeito com a morte, na verdade, ele se tornou, ao mesmo tempo, vítima e carrasco.

Não temos como recuperar a vida do bebê abortado. Não temos como devolver à menina-mãe tudo que lhe foi tirado. Não há como ter de volta os que o coronavírus levou embora, nem os mortos pelo preconceito, pela exclusão, a fome, as guerras e a violência. Temos, no entanto, a chance e o dever de manter viva a pergunta pelas razões de tudo isso. E, mais ainda, temos a oportunidade de, unidos, contribuirmos para um mundo onde todas as pessoas tenham suas vidas amparadas, defendidas. A vida é a única resposta que se pode esperar de uma sociedade madura.

As vítimas das inúmeras formas de morte esperam de nós união de forças, diálogo, cooperação e partilha. Suas mortes chegam à nossa mente como impacto. Suas memórias permanecem entre nós como saudade. Seus legados devem nos conduzir ao enfrentamento pacífico, dialogal e solidário das causas mais profundas de uma sociedade que, no fim, escolhe a morte.

Brasília-DF, 17 de agosto de 2020

* Secretário-Geral da CNBB

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