A missão ad gentes no ministério do missionário presbítero

Por Estêvão Raschietti, sx.1

A inquietante perspectiva ad gentes lança, logo de cara, algumas provocações para o ministério do presbítero e para a vida da Igreja no seu conjunto, pois refletir sobre seu significado é muito mais que resgatar a dimensão missionária da vocação batismal. Ad gentes, “aos povos”, tem a ver com o mandato do Senhor: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulas” (Mt 28,19). Não é um mandato qualquer e somente para alguns: é um envio fundamental que diz respeito a identidade mais nuclear do Evangelho e da própria constituição da Igreja. Com efeito, o Reino de Deus é para todos e não só para Israel, perspectiva que custou muito aos discípulos de Jesus até chegar a assumi-­la e entendê-la. Da mesma forma, no que diz respeito aos ministros ordenados, cuja missão é universal e não restrita a um território (cf. PO 10), podemos nos perguntar: porque tão poucos presbíteros são enviados além-­‐fronteiras por suas igrejas? Porque as exigências do mandato missionário não são parte integrante e “elemento primordial” (RMi 83) da formação presbiteral? Porque nos documentos eclesiais, nos planos de pastoral, nos cursos de capacitação, assistimos a inúmeras, constantes e intrigantes tentativas de domesticar a missão ad intra, quando ela é ad extra por sua própria natureza?

A III Conferência Geral do Episcopado Latino-­‐Americano realizada em Puebla (México), em fevereiro de 1979, teve palavras de forte comprometimento com a caminhada missionária do Continente:

“Finalmente, chegou para a América Latina a hora de intensificar os serviços recíprocos entre as Igrejas particulares e estas se projetarem para além de suas próprias fronteiras, ad gentes. É certo que nós próprios precisamos de missionários, mas devemos dar de nossa pobreza” (DP 368).

Há mais de três décadas, porém, os passos dados nesta direção foram por demais tímidos, insuficientes, desapontadores. As igrejas do Continente, preocupadas com seus próprios problemas, não souberam nem mesmo retribuir à altura o que receberam de outras igrejas, apesar dos impulsos e dos projetos levados adiante por algumas instâncias. Quais são os motivos dessa inércia missionária? Se a missão ad gentes é algo de tão inviável, se a experiência transcultural constitui uma barreira tão irredutível para os nossos presbíteros, será que eles estão aptos a exercer a missão evangelizadora em qualquer outro lugar? Essas perguntas parecem um tanto despropositadas, mas, no nosso entender, é preciso tomá-­‐las a sério enquanto revelam carências críticas do ponto de vista evangélico. Teremos, então, que nos debruçar sobre essas questões para encontrar motivações que nos levem a reconsiderar o chamado ad gentes como fundamental para o ministério dos presbíteros, assim como para o engajamento missionário de todo Povo de Deus.

A missão hoje

Ao abordar o tema da missão para a vida da Igreja, precisamos antes de tudo reconfigurar seu significado na época atual em que vivemos. Desde o Concílio Vaticano II a missão começou a ser entendida não apenas como atividade exclusiva de evangelização aos não-­‐cristãos, mas como elemento estruturante da identidade e da atividade de toda a Igreja que se expressa num quadro complexo de situações e de interlocutores. Em primeiro lugar, a única missão de Deus que procede do amor fontal do Pai (cf. AG 2) e que chama a Igreja a participar (cf. EG 12), acontece em todo tempo e em todo lugar, até os confins da terra e o fim do tempo. Antes de tudo, indica uma dinâmica paradigmática que pretende colocar em chave missionaria toda a atividade habitual das igrejas (cf. EG 15).2 Consequentemente, se desdobra em projetos e âmbitos que dependem de contextos e circunstâncias específicas: “as diferenças não se originam na natureza íntima da missão, mas nas condições em que essa missão se exerce” (AG 6).

Olhando para o mundo de hoje à luz do magistério da Igreja, podemos distinguir três âmbitos essenciais de missão:

a) a pastoral, que tem como interlocutores os cristãos militantes e as comunidades eclesiais constituídas;
b) a ação evangelizadora, que tem como interlocutores os cristãos que estão afastados da vida da comunidade, como também os que não creem em Cristo (cf. DAp 168) no conjunto de uma sociedade secularizada e pluricultural onde cada Igreja local está inserida3;
c) a missão ad gentes, que tem como interlocutores àqueles que não conhecem Jesus Cristo no meio de outros povos e sociedades, onde a presença da Igreja não está suficientemente estruturada (cf. RMi 33; EG 14).

Teremos, portanto, uma única e essencial missão que avança em três direções complementares e fundamentais: uma missão em casa (pastoral), uma missão fora de casa (evangelização) e uma missão na casa dos outros (ad gentes). A Redemptoris Missio, porém, alerta que essa última orienta as outras duas no sentido e no modelo referencial: “sem a missão ad gentes, a própria dimensão missionária da Igreja ficaria privada de seu significado fundamental e de seu exemplo de atuação”, e por isso “é preciso evitar que (…) se torne uma realidade diluída na missão global de todo povo de Deus, ficando, desse modo, descurada ou esquecida” (RMi 34).

Contudo, podemos dizer que, globalmente, a missão da Igreja hoje se articula em torno destes três âmbitos, e é de suma importância compreendê-los como intimamente interconexos. Sem uma adequada animação pastoral teremos uma missão colonizadora, realizada por uma Igreja auto-­‐suficiente e auto-­‐referencial (cf. EG 8; 95), convencida de ser suficientemente evangelizada, que se considera Mestra e não, ao mesmo tempo, discípula. Sem uma ação evangelizadora

significativa, provavelmente teremos uma missão alienada, realizada por uma Igreja que sonha evangelizar o mundo, vivendo “num universalismo abstrato e globalizante” (EG 234), sem ter os pés no chão numa atuação em seu próprio território. Enfim, sem uma generosa cooperação missionária ad gentes teremos, porém, uma missão fechada, realizada por uma Igreja que pensa só em si e no seu meio, que não alarga seus horizontes, perdendo assim sua identidade católica e sua referência ao desígnio de Deus (cf. EN 62).

Três imagens para a missão hoje

Para entender melhor esses desdobramentos de âmbitos e essas conexões podemos recorrer a três imagens evangélicas que descrevem as três situações de missão.4 A primeira é a figura do bom pastor, que diz respeito à pastoral junto às comunidades cristãs formadas e constituídas. É uma missão no espaço restrito do redil, que se baseia numa relação pessoal, íntima, com seus destinatários. O pastor “chama” as ovelhas as quais “ouvem a sua voz”, ele as conhece pelo nome, as acompanha fora, caminha à frente delas, corre atrás delas quando se perdem, dá a vida por elas e ao mesmo tempo tem uma preocupação com outras ovelhas que “não são deste aprisco” (cf. Jo 10,1-­‐18). O pastor é uma figura fundamental para o crescimento da comunidade. A missão aqui é movida pela caridade pastoral e pela proximidade maternal da Igreja às pessoas (cf. DAp 199).

A segunda figura é a do semeador, que diz respeito à ação evangelização junto à sociedade secularizada e pluricultural na qual a Igreja está inserida. O lugar não é mais o redil do pastor, fechado com suas portas e suas regras de funcionamento. Agora o “campo é o mundo” (Mt 13,48), lugar aberto, de risco e de insegurança, onde o semeador sai para semear. Ele lança a semente em todo tipo de terreno, mas não é ele que faz crescer (cf. Mc 4,26-­‐29). A ação do semeador é marcada por uma gratuidade radical: ele somente lança a Palavra de Deus, talvez pequena como semente de mostarda (cf. Mc 4,30-­‐32) e não se preocupa nem de arrancar o joio (cf. Mt 13,29). Mas é animado por uma profunda esperança de que algo possa dar fruto.

A terceira figura é a do pescador, que diz respeito à missão ad gentes junto a outros povos e aos outros contextos totalmente alheios à mensagem do Evangelho. O pescador não exerce sua profissão dentro de um redil, junto a um rebanho com o qual estabelece uma relação de carinho e de intimidade. Ele está navegando em alto mar à mercê das turbulências, num lugar inóspito, totalmente inseguro, incontrolável, hostil. Não tem também a mesma expectativa do agricultor em relação à semente e ao campo, que em algum lugar deverá oferecer seu fruto. A pesca depende do acaso, da sorte, está sujeita a todo tipo de imprevistos, de surpresas e de riscos. É uma missão na qual a Igreja descobre sua verdadeira vocação em deixar-­‐se conduzir somente pela Palavra (cf. Lc 5,5). A missão torna-­‐se aqui uma atividade marcada pela pura fé.

As três imagens bíblicas retratam bem as três diversas situações e a dinâmica diferenciada de cada uma delas. A imagem do pastor é ligada ao cuidado maternal de Yhwh que guia e conduz o Povo de Israel (cf. Gn 48,15; Sl 23; Is 40,11; Jr 31,10; Ez 34,13; Zc 11,7), como também de Davi (cf. 2Sm 5,2; 1Cr 11,2) e de Jesus (cf. Jo 10,11; Hb 13,20). Entretanto, a parábola do semeador é relacionada por Jesus ao anúncio gratuito da Palavra e à sua acolhida na vida das pessoas (cf. Mt 13,19; Mc 4,14; Lc 8,11). Enfim, a metáfora do pescador é associada claramente à missão fora de Israel, ao envio pós-­‐pascal dos discípulos às nações, expresso pelo tema da navegação turbulenta (cf. Mt 8,18ss; Mc 4,35ss; Lc 8,22ss) e da pescaria incerta (cf. Lc 5,1-­‐11; Jo 21,1-­‐17).

O primado referencial da navegação e da pesca

Essa última imagem é a que mais expressa a vocação da Igreja, comunidade de discípulos missionários chamados a “tornar-­‐se pescadores de homens” (Mc 1,17). Ela inclui a semeadura – produzir fruto lançando as redes a partir da orientação da Palavra (cf. Lc 5,5) – como também o cuidado pastoral. Ao pescador Pedro, depois da pesca milagrosa, o Senhor pergunta: “você me ama? Então cuide das minhas ovelhas” (Jo 21,17). Depois de ter pescado, Pedro terá que cuidar da vida de quem resgatou. Eis, portanto, que a tríade pastor-­‐semeador-­‐pescador se repropõe como um cuidado-­‐anúncio-­‐envio numa única missão de Deus onde a Igreja é chamada a participar. Contudo, o primado referencial da navegação e da pesca – Jesus escolhe pescadores e não pastores (!) – deve ser buscado no espaço onde esta missão se realiza: não é apenas o redil de Israel e nem o campo do mundo no qual se vive, mas o mar desconhecido e impérvio das nações, dos povos e das culturas até os confins da terra, porque “Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4).

O Novo Testamento atesta que esta saída dos discípulos pelas águas do mar da vida foi tremendamente problemática. Quando Jesus convida os seus a ir “do outro lado do mar” (Mc 4,35), aponta exatamente para as terras pagãs. Nessa travessia sopra um vento tão forte que as ondas se lançam dentro do barco. Jesus, no entanto, dorme tranquilo com a cabeça num travesseiro, a agitação do mar parece não atingi-­‐lo. Quem está inquieta é a turma dos discípulos: a tempestade está com eles, a significar a resistência e o alvoroço da primeira comunidade cristã em dirigir-­‐se aos pagãos. Isso não foi nada pacífico: pelo contrário, foi um processo extremamente sofrido de mudança de mentalidade em relação à compreensão do Reino de Deus não apenas restrito ao povo de Israel, mas estendido a todas as nações.5

Em outra ocasião, Jesus “obrigou” os discípulos a ir ao outro lado do mar (cf. Mt 14,22), mas o vento era contrário e o mar estava agitado. Jesus aparece caminhando sobre as águas, animando os seus a não ter medo, ir em frente e convidando Pedro a caminhar com ele andando nas ondas. Mas Pedro, o “teimoso”, logo dando os primeiros passos sobre o mar, ficou com medo e afundou. Então Jesus o repreendeu: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (Mt 14,31). Essa dúvida aparece em Mateus, no mandato missionário do capítulo 28, no momento em que o Ressuscitado envia seus irmãos às nações: “Alguns, porém, duvidaram” (Mt 17b). Duvidaram do que? Com certeza alguns não acreditaram que ele estava vivo (cf. Mc 16,11.14; Lc 24,11.41; Jo 20,24-­‐29), mas também, junto a incredulidade sobre as aparições do Ressuscitado6, duvidaram também da missão as nações, que considerava os pagãos merecedores da mesma graça concedida aos judeus (cf. At 11,15). O medo e o afundamento de Pedro, com muita probabilidade, têm a ver com a titubeação do apóstolo diante da inclusão dos pagãos na comunidade de Antioquia, lembrada e enfrentada por Paulo em Gl 2,11-­‐14.

Por fim, é dever lembrar o papel primordial de Jesus nesta missão de “pescar gente”, de resgatar vidas das profundezas da perdição. É Ele que chama os pescadores, que envia, que diz onde lançar as redes (cf. Lc 5,5; Jo 21,6). Quando os apóstolos vão por conta, não apanham nada: “Simão Pedro disse: ‘Eu vou pescar’. Eles disseram: ‘Nós também vamos’. Mas naquela noite não pescaram nada” (Jo 21,3). Sem a presença, a visão e a orientação de Jesus a Igreja não pesca nada. Portanto, o Senhor vem imprimir um caráter essencial ao trabalho dos pescadores: o primado do Evangelho sobre a evangelização, o primado absoluto da iniciativa divina sobre a ação humana. Desta maneira, acolhendo a sua Palavra os pescadores apanham uma “multidão” de peixes (cf. Jo 21,6). Essa expressão é usada pelo Evangelho de João somente no capítulo 5 a indicar a quantidade de pessoas que estavam nas proximidades da piscina de Betesda (cf. Jo 5,1-­‐4): eram cegos, coxos e paralíticos. Os pobres e os excluídos são os peixes a serem pescados: quando a comunidade dos discípulos se dirige a outras categorias de pessoas, não pesca nada.

A predominância pastoral na consciência eclesial

O Documento de Aparecida convida todas as comunidades eclesiais do continente a ir além de uma pastoral de conservação para se lançar numa pastoral decididamente missionária (cf. DAp 370), evocando a ícone da navegação e da pesca: “Nós somos agora, na América Latina e no Caribe, seus discípulos e discípulas, chamados a navegar mar adentro para uma pesca abundante. Trata-­‐se de sair de nossa consciência isolada e de nos lançarmos, com ousadia e confiança (parrésia), à missão de toda a Igreja” (DAp 363). Da mesma forma, João Paulo II no encerramento do Grande Jubileu do ano 2000, fez ressoar para toda a Igreja as palavras do Senhor: “Duc in altum!”, avancem para águas mais profundas (Lc 5,4). No entanto, como na época da primeira comunidade apostólica, encontramos muitas resistências, inércias, dúvidas, receios, preconceitos diante do apelo missionário. Particularmente, por parte dos presbíteros que recebem essa solicitação como uma cobrança ingrata, um dever moral, uma inquietude constrangedora perante a generosa dedicação com que cada um procura caracterizar seu ministério, muitas vezes marcado por situações complexas, difíceis, extenuantes que geram solidão, incompreensão, desânimo.

Todavia, à base de certo desconforto está um conceito equivocado de missão e de ministério, centrado em “promover iniciativas” mais que na mudança de mentalidade. Há também o óbvio receio de deixar confortáveis redis em troca das intempéries do mar, embarcando naquela que pode ser considerada a “experiência mãe” da missionariedade da Igreja:

Acredito que a experiência geral dos missionários estrangeiros leva a desenvolver o sentido da incerteza como uma caraterística comum. É uma qualidade que tem a ver com a vida numa cultura que não é a deles e que sabem de não poder entendê-­‐la plenamente. Vem do falar uma língua com a competência de uma criança e, ao mesmo tempo, ter que presidir celebrações religiosas, ensinar nas escolas e representar publicamente a comunidade. Vem do pregar as exigências do Evangelho sem nunca ter a certeza de sua sensatez e de sua compreensão. Este tipo de incerteza leva a desenvolver um sentido muito concreto da própria humanidade e vulnerabilidade.7

Quando a Redemptoris Missio confere à missão ad gentes um papel absolutamente referencial para a natureza missionária da Igreja (cf. RMi 34), podemos relacionar esse intuito com a situação existencial de insegurança e de desnorteamento na qual se encontra o missionário no meio de um outro povo totalmente estranho. Esta circunstância diz respeito também a Igreja de hoje no meio de um mundo secularizado e pluricultural, onde é tentada a se fechar em seus esquemas doutrinais e rituais diante do perigo de ver abaladas suas certezas. Na realidade, é na experiência da incerteza vivida no encontro com o outro, que a fé vai ao seu âmago também no encontro com o Mistério: é ai, pois, que Deus se manifesta de uma maneira totalmente inesperada e surpreendente.

Mas a nossa Igreja hoje continua teimosa privilegiando claramente o redil do pastor ao mar pós-­‐ moderno do pescador. Há uma inflação da metáfora do Bom Pastor nos documentos do magistério referente aos ministérios ordenados e à formação presbiteral. Isso não é absolutamente um mal, porque a dimensão pastoral é essencial à vida da Igreja e do mundo: ai de nós se não fosse assim! Mas temos que ter consciência que a pastoral pressupõe a evangelização. Se isto não existe ou é pouco incentivado, a ação pastoral se torna confusa, esvaziada e cobrada em sua parca atuação. O pastor contemporâneo entende que hoje não há apenas uma ovelha perdida e sim as noventa e nove (cf. Mt 18,12-­‐14). Nesse caso, porém, confunde o campo do agricultor com o próprio redil. Assim, da mesma forma, quando falamos de pastoral urbana, corremos o risco de usar um imaginário totalmente inapropriado para uma realidade alheia a qualquer tipo de arrebanhamento.8

Com efeito, estamos falando de âmbitos distintos e entrelaçados ao mesmo tempo, que nunca podem ser entendidos sob a hegemonia de um único olhar e de um único ofício. Quando a nossa preocupação principal não é fazer descobrir a beleza da Boa Nova, mas gerir uma sociedade, um grupo, uma instituição para que se torne relevante e influente, sobressai o nosso instinto pastoral. Essa mentalidade está tão radicada em nós que até os desafios missionários mais ousados são compreendidos a partir da exigência de extensão e de abrangência de nossos espaços: como chamar de volta as pessoas para a nossa comunidade? Como congregar gente junto às nossas obras, iniciativas, eventos? Como “implantar” a nossa Igreja numa sociedade não-­‐cristã? A compreensão de missão aqui é claramente afinada a identificar o Reino de Deus com a afirmação da instituição eclesiástica, quase se tratasse de uma operação mercadológica. No entanto, a evangelização vai mais além, incluído perspectivas bem mais amplas e dinâmicas mais diversificadas, como a semeadura generosa e a pesca milagrosa. Nesses processos a comunidade discipular é chamada a participar, mas o protagonismo principal é da ação divina.

A missionariedade apostólica na identidade presbiteral

Não há dúvida que a principal inércia evangelizadora por parte do clero está no fato de entender-­‐ se por demais pastores, pouco semeadores e quase nada pescadores. Nos seminários e nas casas de formação em geral se venera muito a admirável figura do Cura D´Ars, mas parece não ter espaço a mais ousadia de Francisco Xavier. A atenção do pastor é a de conservar a grei, procurar que nenhuma ovelha se perca, conduzi-­‐las em boas pastagens, cuidar que cresçam na fé. A própria linguagem é focada a se expressar em termos de cristandade e de salvaguarda. Contudo, sente-­‐se a exigência de iniciar o ministério presbiteral, como também toda ação eclesial, a uma missionariedade maior, mais aberta, mais articulada, que pelo menos enxergue a necessidade de outros ministérios fundamentais na Igreja, expressão de uma multiplicidade de serviços: “Foi ele quem estabeleceu alguns como apóstolos, outros como profetas, outros como evangelistas e outros como pastores e mestres” (Ef 4,11). Essa Igreja não pode de forma alguma se perder na autoreferencialidade, porque ela “não é fim em si mesma, uma vez que se ordena ao Reino de Deus, do qual é princípio, sinal e instrumento” (RMi 18).9

Nem a guarda nem a defesa são os únicos deveres da Igreja quanto aos dons que possui. Dever seu, inerente ao patrimônio recebido de Cristo, é também a  difusão, a oferta, o anúncio: “Ide, pois, ensinar todos os povos” (Mt 28,19). Foi a última ordem de Cristo aos seus Apóstolos. Estes, já com o simples nome de Apóstolos, definem a própria missão indeclinável.10

 Em primeiro lugar, os presbíteros na comunidade eclesial tem seu ministério articulado nos três ofícios de profeta, sacerdote e pastor: “eles são consagrados, à imagem de Cristo para pregar o Evangelho, apascentar os fiéis e celebrar o culto divino” (LG 28). Esses desdobramentos já fazem parte de sua identidade e mostram como seu serviço não se resume na função monocórdia do pastor, pelo contrário, é expressão de toda ministerialidade e de toda missionariedade da Igreja. Configurado a Cristo Cabeça (cf. PO 2) podemos dizer que o presbítero “organiza e dá coesão ao corpo inteiro, através de uma rede de articulações, que são os membros, cada um com sua atividade própria, para que o corpo cresça e construa a si próprio no amor” (Ef 4,16). Portanto, ele deve estar conectado com cada campo de evangelização, seja ele o redil do pastor, o campo do semeador ou o mar do pescador. Isso significa que o presbítero não tem que fazer de tudo, e sim coordenar, animar, promover uma multiplicidade de ministérios.

Em segundo lugar, nesse serviço de fundamento e de articulação da ministerialidade e da missionariedade da Igreja, podemos nos equivocar em interpretar os grandes carismas fundantes do ponto de vista do pastor. O ministério ordenado do bispo, e consequentemente do presbítero11, deve ser compreendido antes de tudo dentro da categoria do “apóstolo”, ou seja, do anunciador do Evangelho e “fundador” de Igrejas. Nesse sentido, ele tem em si a raiz e o exercício dos diversos carismas e, portanto, promove a multiplicidade dos ministérios. Sua função é de evangelizador e não primeiramente de administrador: “a missão divina confiada por Cristo aos Apóstolos durará até ao fim dos tempos (cf. Mt 28,20), uma vez que o Evangelho que eles devem anunciar é em todo o tempo o princípio de toda a vida na Igreja” (LG 20). Deste modo, “é preciso que o Bispo seja, antes de mais, um pregador da fé, que conduza a Cristo novos discípulos” (AG 20).

Este testemunho do então cardeal de Milão, Carlo Maria Martini (1927 – 2012), nos ajuda a entender essa tensão entre a figura do apóstolo e a do pastor:

Muitos  mal-­‐entendidos  nas  ações  ou  nos  gestos  do  bispo  acontecem  porque  é considerado pastor e não apóstolo. Toda aproximação do bispo a outros ambientes  e  vice-­‐versa,  é  entendida  como  uma  instrumentalização,  com  medo, quase representasse um perigo. Isso porque o pastor cuida do rebanho, e qualquer olhar fora do rebanho é visto com receio, porque assim perde de vista as próprias ovelhas. Esta é a maneira de ver a figura do bispo restringindo-­‐a ao âmbito rigidamente pastoral.12

O prelado, todavia, se pergunta como relacionar harmonicamente as duas exigências de pastor-­‐ comunidade e de apóstolo-­‐sociedade, e admite que nem sempre é fácil para os presbíteros, assim como para os bispos, encontrar caminhos concretos de atuação, porque, evidentemente, a paróquia absorve o ministro ordenado em suas estruturas eminentemente pastorais.13

Contudo, não podemos de modo algum renunciar a refletir e a nos resignar de ver o presbítero preso rigidamente dentro de esquemas, formatações e armações. A missão convida hoje a Igreja à imaginação e à criatividade também dentro de seus âmbitos mais corriqueiros (cf. EG 28). Redescobrir a apostolicidade da identidade presbiteral é um convite a ser mais, a avançar, a dinamizar, a recriar, a olhar longe, a ir além-­‐fronteiras:

O Evangelho convida-­‐nos de maneira resoluta a uma “geografia” extremamente ampla, sem fronteiras, que não se limita aos mapas de ruas de nossos bairros nem aos guias de estradas de nossas regiões; antes, tal geografia desdobra incessantemente ante nossos olhos um imenso mapa-­‐múndi, ou Atlas universal. Por sua missão pastoral, a Igreja é espaço de caridade; por sua missão agrícola, espaço de esperança; e por sua missão haliêutica, espaço de uma fé que sabe apostar no imprevisível. Somente assim a Igreja pode continuar sendo, no seio de um mundo que troca de pele com velocidade total, um verdadeiro e indispensável sacramento “teologal”.14

Conversão missionária

Não é a primeira vez que os documentos do magistério convidam a uma profunda conversão da Igreja. Já O Concílio Vaticano II apelava para a um decidido aggiornamento das estruturas eclesiais.15 Paulo VI, na Evangelii Nuntiandi, afirmava que a Igreja “tem sempre necessidade de ser evangelizada” (EN 15), e o Documento de Puebla reiterava “a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelo pobres” (P 1134). Por sua vez, João Paulo II, na Redemptoris Missio, fala de conversão eclesial em termo de metanóia missionária: “impõe-­‐se uma conversão radical da mentalidade para nos tornarmos missionários” (RMi 49).

Mas foi em Santo Domingo que as igrejas latino-­‐americanas expressam pela primeira vez a necessidade de uma “conversão pastoral” coerente com o Concílio: “ela diz respeito a tudo e a todos: na consciência e na práxis pessoal e comunitária, nas relações de igualdade e de autoridade; com estruturas e dinamismo que tornem a Igreja presente com cada vez mais clareza, enquanto sinal eficaz, sacramento de salvação universal” (SD 30). Aparecida retoma esse tema dando uma ênfase decisiva à conversão das estruturas (cf. DAp 365) e declara solenemente que “para nos converter em uma Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora, temos que ser de novo evangelizados” (cf. DAp 549): uma nova evangelização da própria Igreja!

Esta evangelização eclesial se expressa em termos de “saída” missionária da “consciência isolada” (DAp 363) que parte das estruturas (cf. EG 26), perpassa o coração das pessoas (cf. DAp 366), as relações de comunhão (cf. DAp 368), as práticas pastorais (cf. DAp 371) e se chega a se lançar além-­‐fronteiras, ad gentes:

“O mundo espera de nossa Igreja latino-­‐americana e caribenha um compromisso mais significativo com a missão universal em todos os Continentes. Para não cairmos na armadilha de nos fechar em nós mesmos, devemos formar-­‐nos como discípulos missionários sem fronteiras, dispostos a ir ‘à outra margem’, àquela onde Cristo ainda não é reconhecido como Deus e Senhor, e a Igreja não está presente” (DAp 376).

Acontece, porém, que se não houver essa última saída não haverá também renovação alguma. O Decreto Ad Gentes adverte: “a graça da renovação não pode crescer nas comunidades, a não ser que cada uma dilate o campo da sua caridade até aos confins da terra e tenha igual solicitude pelos que são de longe como pelos que são seus próprios membros” (AG 37).

O sentido deste apelo está em acolher a radicalidade do mantado do Senhor de sermos enviados a todos os povos, como motivo de uma profunda e permanente conversão pessoal e estrutural. Essa conversão consiste em: (1) assumir decididamente o caminho discipular das bem-­‐aventuranças (cf. Mt 5), como conteúdo, testemunho e finalidade da missão (cf. Mt 28,19); (2) responder ao chamado de ser enviados se despojando de tudo (cf. Mc 10,28-­‐30) e não levando mais que o necessário (cf. Mc 6,8-­‐9); (3) sair ao encontro dos pobres e aproximar-­‐se aos caídos (cfr. Lc 10,36), promover a vida e lutar contra o mal (cf. Mt 10,8); (4) abrir-­‐se aos outros sem excluir ninguém, porque o horizonte da misericórdia do Pai é universal e abraça a todos (cf. At 10,34-­‐35). Estas quatro exigências, articuladas em tensão dialética em dois eixos (discipulado/missão – proximidade/universalidade), constituem o próprio “DNA” do Evangelho e, portanto, da Igreja.

Este “DNA” está claramente presente na parte final da Oração de Ordenação dos Presbíteros:

DISCIPULADO: Nós vos pedimos, Pai todo-­‐poderoso, constituí este vosso servo na dignidade de Presbítero; renovai em seu coração o Espírito de santidade; obtenha, ó Deus, o segundo grau da Ordem sacerdotal, que de vós procede, e sua vida seja exemplo para todos.
MISSÃO: Seja ele cooperador de nossa Ordem episcopal para que as palavras do Evangelho, caindo nos corações humanos através de sua pregação, possam dar muitos frutos e chegar até os confins da terra, com a graça do Espírito Santo.
PROXIMIDADE: Seja ele juntamente conosco fiel dispensador dos vossos mistérios, de modo que o vosso povo renasça pela água da regeneração, ganhe novas forças do vosso altar, os pecadores sejam reconciliados e os enfermos se reanimem.
UNIVERSALIDADE: Que ele esteja sempre unido a nós, Senhor, para implorar a vossa misericórdia em favor do povo a ele confiado e em favor de todo o mundo. Assim, todas as nações, reunidas em Cristo Jesus, se convertam em um só povo, para a consumação do vosso Reino.

Dimensão universal

Se entendermos estas quatro exigências fundamentais, com seus eixos cruzados, como os quatro pontos cardeais da bússola do nosso presbítero-­‐navegador-­‐missionário, com certeza o ponteiro será atraído pelo campo magnético da universalidade. Esta é a dimensão norteadora, pois a abertura ad gentes pode ser considerada como a verdadeira “mãe da Igreja”.16 Com efeito, a Igreja nasce quando percebe que o caminho que o Espírito lhe indica, não a conduz ao coração do judaísmo, mas o ao mundo inteiro como uma nova realidade profética. O que emerge claramente, particularmente do livro dos Atos, é que a Igreja é “missionária por natureza”, ad gentes desde suas origens. Da mesma forma, os sinóticos atestam que o ponto mais ousado e mais alto da ética discipular é amar os inimigos, ou seja, todos, porque “assim se tornarão filhos do Pai” (Mt 5,45); e na releitura que Lucas faz da Boa Nova do Messias não comparece mais “o dia da vingança do nosso Deus” (Is 61,2b) contra as nações pagãs, pelo contrário: haverá compaixão e misericórdia em primeiro lugar com os estrangeiros.17

Não há a menor dúvida que o centro da virada profética do Evangelho para todos os tempos, está no horizonte universal do Reino que anuncia. Hoje, o cristão é chamado, por vocação, mais do que qualquer outra pessoa, a dar concretude a essa universalidade através de suas opções, suas atitudes, sua consciência e seus compromissos. Numa época de globalização como a nossa, não é mais possível pensarmos em termos paroquiais, diocesanos ou até nacionais: são pequenos demais. A paixão pelos povos, própria da vocação batismal, se expressa no sentir e no vibrar profundamente pela e com a humanidade inteira, em ser capaz de realizar gestos simples, ousados e concretos de solidariedade e de partilha com todos os povos, para tornarmos assim um sinal profético de uma nova humanidade mundial, fraterna e multicultural.

Essa dimensão universal da missão encontra sua expressão participativa na vida do Povo de Deus naquele conjunto de iniciativas que chamamos de cooperação missionária.18 A missão por sua natureza é sempre uma tarefa compartilhada, é um verdadeiro exercício de comunhão intereclesial. Esta participação se realiza essencialmente em três formas: pela comunhão espiritual particularmente através da oração, seguindo o legado admirável de Santa Terezinha do Menino Jesus; pela comunhão dos bens materiais, com os projetos missionários e com as comunidades que passam necessidades (cf. Rm 15,25-­‐28; RMi 81); pela entrega da vida, incentivando uma animação vocacional orientada ad gentes, pois sem o envio de missionários e missionárias não há nenhuma missão (cf. Rm 10,15).19 Obrigação sagrada dos presbíteros é incentivar o mais possível a animação missionária em suas comunidades (cf. RMi 84) através do cultivo da espiritualidade missionária, da divulgação da informação missionária, do incentivo da formação missionária, da articulação do Conselho Missionário Paroquial20 e da Infância Missionária, da promoção de iniciativas de caráter missionário ad gentes (vigílias, celebrações, quermesses, gincanas, noites culturais, etc.), em primeiro lugar o Dia Mundial das Missões.21 É dever lembrar o papel eminentemente pastoral da animação missionária:

O maior recurso que animação missionária tem nesse serviço à Igreja é a comunicação da beleza do testemunho da missão ad gentes. Histórias de missionários e missionárias que dão a vida em situações limites de pobreza, de perseguição, de dedicação, de diálogo e de encontro com os outros, é patrimônio que tem que ser divulgado, conhecido, admirado, e que gera atração, inspiração, vontade de entrega. Não se ama o que não se conhece, e o que não se conhece não desperta nenhum estímulo para uma conversão pessoal e pastoral.22

O engajamento na animação e cooperação missionária como manifestação imprescindível de comunhão eclesial, não exime, porém, os presbíteros a um compromisso pessoal com a missão ad gentes estritamente relacionado ao ministério ordenado. O Decreto conciliar Presbyterorum Ordinis é por demais explícito e afervorado nesse sentido (cf. PO 10). Claramente, o envio além-­‐ fronteiras fidei donum não constitui uma obrigação imprescindível para todo presbítero diocesano, mas com certeza faz parte da natureza de seu ministério ser penetrado e animado de um profundo espírito missionário universal (cf. PDV 18), “daquele espírito verdadeiramente católico que os habitua a olhar para além dos confins da própria diocese, nação ou rito, e ajudar as necessidades de toda a Igreja, dispostos a pregar o Evangelho em toda a parte” (OT 20).

“Lembrem-­‐se, por isso, os presbíteros que devem tomar a peito a solicitude por todas as igrejas. Portanto, os presbíteros daquelas dioceses que têm maior abundância de vocações, mostrem-­‐se de boa vontade preparados para, com licença ou a pedido do próprio Ordinário, exercer o seu ministério em regiões, missões ou obras que lutam com falta de clero” (PO 10).

Da mesma forma, e em primeiro lugar, os Bispos:

“como membros do corpo episcopal, sucessor do Colégio apostólico, são consagrados não só em benefício duma diocese, mas para salvação de todo o mundo. O mandato de Cristo de pregar o Evangelho a toda a criatura os afeta primária e imediatamente a eles, com Pedro e sob Pedro. Daí nascem aquela comunhão e cooperação das igrejas, hoje tão necessárias para levar a cabo a obra da evangelização. Em virtude desta comunhão, cada uma das igrejas leva em si a solicitude por todas as outras, manifestam umas às outras as próprias necessidades, comunicam entre si as suas coisas, pois a dilatação do corpo de Cristo é dever de todo o Colégio episcopal (…) O sagrado Concílio deseja que os Bispos, ponderando a gravíssima penúria de sacerdotes que impede a evangelização de muitas regiões, enviem, depois da devida preparação, alguns dos seus melhores sacerdotes que se ofereçam para as missões” (AG 38).

Conclusão

A partir destas provocações conciliares, podemos considerar como sinal sombrio o presbitério que não tem entre seus membros alguns sacerdotes fidei donum. Igualmente, é uma deficiência contra-­‐testemunhal os ministros ordenados prezarem por um estilo de vida pouco sóbrio, por uma obsessão com a carreira eclesiástica, por visões redutivas de missão, por uma pastoral centralizadora e auto-­‐referencial, por investimentos excessivos em paramentos, objetos litúrgicos, artes e espaços sagrados (qualquer objeção com referência à unção de Betânia estaria aqui fora de lugar), por uma resistência às vezes boçal diante de qualquer proposta missionária, por uma insensibilidade que tem pouco de humano diante das necessidades de outras igrejas. São esses pecados inadmissíveis contra a catolidade da Igreja e, acima disto, contra o Evangelho.

A formação presbiteral inicial e permanente precisam pautar caminhos de iniciação missionária que invistam em todas as dimensões – humana, comunitária, espiritual, intelectual, pastoral – e não apenas essa última. Cursos de missiologia nos seminários precisam ser estendidos, qualificados, sistematizados com certo rigor, porque a teologia da missão não é apenas uma teologia “aplicada” ou uma teologia prática para um improvável envio missionário, mas é antes de tudo uma teologia fundamental.23 Sem essa reflexão a Igreja corre o risco de perder seu rumo. Da mesma forma, experiências missionárias antes, durante e depois da época do seminário precisam ser acompanhadas e trabalhadas, a fim de que a missão ad gentes não se torne apenas uma experiência “turística” sem comprometimento e sem encarnação com a realidade. Ao contrário, ser Igreja missionária nas situações mais difíceis deve ser motivo de profundos questionamentos sobre a vida e a fé do seminarista e do presbítero, juntamente a todo o sistema de “certezas” que sustentam os projetos, o ministério e a identidade de uma consagração a Deus.

Enfim, o convite radical da missão ad gentes é partir! Uma igreja sem saída, sem partida, sem caminho, sem ir ao encontro dos outros não é uma igreja discipular. Nem a comunhão e a fraternidade que pode existir entre seus membros seriam uma comunhão e uma fraternidade autenticamente evangélicas. Nem a Eucaristia celebrada com pouco fervor católico e anseio universal, quase fosse um dom de Deus exclusivo somente para nós e para as nossas comunidades24, seria uma Eucaristia vivida com honesta e razoável disposição. Esse sair de si e esse “sentir-­‐com” representa para a Igreja um renascer à sua verdadeira vocação, um êxodo pascal de morte e ressurreição na causa do Reino, um respiro largo, ecumênico, planetário que quer abraçar o mundo e com o mundo dar glória da Deus, uma dinâmica peregrina cujos horizontes são sempre geográficos e escatológicos: os confins da terra e o fim dos tempos.

Na paixão missionária a Igreja testemunha sua fé e encontra a si mesma no seu Senhor. O presbítero, em sua consagração, tem o carisma fundamental deste impulso que precisa ser reavivado em favor de todo Povo de Deus, porque a Igreja hoje “necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do Continente. Necessitamos que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo” (DAp 362), pois “a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho” (DAp 380).

Notas:

1 Pe. Estêvão Raschietti, missionário xaveriano, italiano, no Brasil desde 1990, é mestre em Teologia Dogmática com Concentração em Missiologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, SP. Esse texto refere­‐se à conferência proferida pelo autor no 2º Congresso Missionário Nacional de Seminaristas, realizado em Belo Horizonte de 9 a 12 de julho de 2015.

2 Cf. FRANCISCO. Discurso do Santo Padre aos bispos responsáveis do Conselho Episcopal Latino-­‐Americano por ocasião da Reunião Geral de Coordenação, 28 de julho de 2013.

3 A XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos em Roma, que teve como tema “A Nova Evangelização para a transmissão da fé cristã”, assim como V Conferência Geral do Episcopado Latino-­‐americano em Aparecida, que lançou a “Missão Continental” (cf. DAp 362; 551), deixaram bastante claro que o “campo” da nova evangelização não são somente “as pessoas batizadas que não vivem as exigências do batismo”, mas também os “que ainda não creem em Cristo no espaço de seu próprio território e responder adequadamente aos grandes problemas da sociedade na qual [a Igreja] está inserida” (DAp 168; cf. Propositio 5). Desta maneira, situações que a Redemptoris Missio designava como missão ad gentes (p. ex. os novos fenômenos sociais, os modernos areópagos, etc. – cf. RMi 37), agora vêm fazer parte da nova evangelização, como ação da Igreja na sociedade onde ela se encontra.

4 Cf. GIRARD, Marc. A missão da Igreja na aurora do novo milênio. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 45-­‐75.

5 Os Atos dos Apóstolos retratam bem esse drama. No começo, havia um grupo judaico que aguardava ansioso a restauração do reino de Israel (cf. At 1,6). Em Pentecostes, com a vinda do Espírito sobre a comunidade reunida, Pedro proclama com coragem a Boa Nova, porém somente a judeus (cf. At 2,5). Deste momento em diante a comunidade começa a tomar consciência lentamente, e também dolorosamente, que está acontecendo alguma coisa de diferente, ao passo que o Espírito a “empurra” e a “conduz” além de si mesma, a ir a todos os povos, incluindo os samaritanos (cf. At 8,17), os prosélitos (cf. At 8,37), os tementes a Deus (cf. At 9,42), os pagãos merecedores (cf. At 10,45) e, enfim, os pagãos em massa (cf. At 11,21). Cf. BEVANS, Stephen B.; SCHROEDER, Roger P. Teologia per la missione oggi. Costanti nel contesto. Brescia: Queriniana, 2010, p. 34-­‐71.

6 O envio ad gentes é posterior ao ministério histórico de Jesus. Ele tinha enviado os apóstolos às ovelhas perdidas da casa de Israel, evitando o caminho dos pagãos e as cidades dos samaritanos (cf. Mt 10,5-­‐6). Esta recomendação é reforçada por Jesus no encontro com a mulher cananéia (cf. Mt 15,24). Quem envia os discípulos às nações é o Ressuscitado em suas aparições (cf. Mt 28,16-­‐20; Mc 16,14-­‐18; Lc 24,44-­‐48; At 22,17-­‐21; Gl 1,15-­‐16). Para os Atos dos Apóstolos esta foi uma iniciativa do Espírito Santo (cf. At 10,44-­‐45; 11,17-­‐18).

7 SIVALON, John C. Il dono dell’incertezza. Perché il postmoderno fa bene al Vangelo. Bologna: EMI, 2014, p. 16-­‐17.

8 Veja o título enfático da obra Reinold Blank: Ovelha ou protagonista? A Igreja e nova autonomia do laicato no século
21. São Paulo: Paulus, 2006.

9 PAULO VI. Discurso de abertura do terceiro período do Concílio, 14 de setembro de 1964: AAS 56 (1964) 810.

10 PAULO VI. Ecclesiam Suam, 37.

11 Os presbíteros foram chamados “para que fossem cooperadores da Ordem do episcopado para o desempenho perfeito da missão apostólica confiada por Cristo” (PO 2).

12 MARTINI, Carlo Maria. Quale prete per la Chiesa di oggi. Milano: InDialogo, 2015, p. 27.

13 Ibid. 28

14 GIRARD, p. 75.

15 Cf. JOÃO XXIII. Gaudet Mater Ecclesia. Discurso na solene abertura do Concílio, 11 outubro de 1962, §37.

16 Cf. BEVANS, p. 35

17 Logo no começo de sua atividade pública, Jesus vai a Nazaré, a cidade onde havia se criado, entra na sinagoga e levanta-­‐se para fazer a leitura (cf. Lc 4,14-­‐30). Pega a Bíblia, lê o trecho de Isaías 61,1-­‐2, mas omite as terríveis palavras dirigidas às nações pagãs. Jesus pára na virgula depois de proclamar “um ano de graça do Senhor” (Lc 4,19). Essa omissão foi tão proposital que a “homilia” dele vai toda nessa direção: “havia muitas viúvas em Israel e houve grande fome em toda a região. No entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, e sim a uma viúva estrangeira. Havia também muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu. Apesar disso, nenhum deles foi curado, a não ser o estrangeiro Naamã, que era sírio” (Lc 4,25-­‐27). Os nazarenos não receberam nada bem as palavras de Jesus. Não tinham entendido – e custaram muito a entender também os próprios apóstolos – que Jesus, Filho do Homem e Filho de Deus, não veio só para Israel, mas para todos. Não há mais vingança contra ninguém.

18 Cf. Cooperatio Missionalis – Instrução da Congregação para a Evangelização dos Povos, 1998. § 2.

19 Cf. COMINA, Conselho Missionário Nacional. Missão e cooperação missionária. Orientações para a animação missionária no Brasil, 2015, § 26.

20 Cf. ibid. § 33-­‐35.

21 Cf. Código de Direito Canônico, §791.

22 Ibid. § 29a.

23 Cf. SUESS, Paulo. Introdução à Teologia da Missão. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 19.

24 É só dar uma olhada às orações dos fieis dos nossos folhetos dominicais: reza-­‐se para as nossas famílias, para as nossas comunidades, para os nossos pobres … tudo para nós! Um egos-­‐centrismo para ninguém botar defeito.

 

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