Ele estava fora de si

de Alfredo J. Gonçalves *

Assim se expressa o evangelista: “Jesus foi para casa, e de novo se reuniu tanta gente que eles não podiam comer nem sequer um pedaço de pão. Quando souberam disso, os parentes de Jesus foram buscá-lo porque diziam que estava fora de si” (Mc 3,20-21). Por uma parte, surpreende o fato de os próprios parentes o julgarem “fora de si” (ou “louco”, como se lê em algumas traduções). Desviara-se da tradição familiar, cultural e religiosa de seu povo!? De outra parte, porém, é compreensível que os familiares estejam preocupados com a saúde mental de um dos seus, que tendo vivido com eles dentro de casa, subitamente se apresenta como enviado de Deus. Em vez de seguir as regras explícitas ou implícitas da sociedade vigente, sai de casa e põe-se a percorrer “todas as cidades e povoados ao encontro das multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). Mostra compaixão por tais multidões, apaixona-se por elas, a ponto de estremecerem-lhe as entranhas.

av120510_cah0027Efetivamente, do ponto de vista dos parentes e vizinhos, da opinião pública e dos mass media – como seríamos levados a dizer hoje em dia – Jesus estava fora de si. Em primeiro lugar, porque seu coração, sua mente e sua alma encontravam-se centrados no projeto de Deus. “Não sabiam que eu devo estar na casa de meu Pai?” – diz Ele em outra ocasião (Lc 2,49). Depois passará horas, noites inteiras a sós em oração, no deserto, na montanha ou em lugares isolados, na intimidade com o Pai. Fazia-o com tal frequência e proximidade que passou a referir-se a Deus de forma nova e genuína. Abba – dizia – como um menino que se dirige carinhosa e familiarmente ao pai. Inaugura, assim, uma maneira própria e original de rezar, meditar e contemplar o mistério divino. Nesta oração nova (e somos levados a dizer nua), a simplicidade e a singeleza de uma criança ganham primazia sobre os ritos, sacrifícios e fórmulas de uma tradição religiosa que, por sua rigidez e intolerância, tornava-se cada vez mais obsoleta, fossilizada, a-histórica.

Em segundo lugar, Jesus estava fora de si porque, como na metáfora do “Bom Pastor”, caminhava em busca da “ovelha perdida”: os leprosos e marginalizados, os infelizes e oprimidos, os necessitados e sofredores, os pequenos e últimos. Manifestava uma predileção inequívoca por aqueles que a teocracia da época tendia a marginalizar com a tríplice maldição de pobre, doente e pecador. Trilogia preconceituosa e discriminatória, onde uma palavra chamava e completava a outra, num círculo fechado e vicioso que, no fim da linha, levava à exclusão social. Seus passos pareciam conduzi-lo aos lugares onde a vida se encontrava mais abandonada e ameaçada, como no caso das mulheres prostituídas ou das crianças mantidas à distância. Ou ainda nas passagens emblemáticas das bem-aventuranças, da parábola do bom samaritano e do chamado juízo final (respectivamente, Lc 6,20-26; Lc 10,2537; Mt 25,31-46).

Fora de si, mas não fora, acima ou alheio à história, e sim para além da história terrena. Encarnando-se, assume a obra histórica dos seres humanos na tentativa de transfigurá-la em Reino de Deus. Nenhuma formação humana esgota os critérios do Reino, mas pode acrescentar-lhe um passo. A pátria definitiva supõe mas ultrapassa os limites da peregrinação terrestre. Não duas histórias, mas uma só trajetória humano-divina. Nesta, o fruto do trabalho se reveste com a graça e a bênção de Deus. Fazendo-se homem, Jesus diviniza a tarefa humana: nascendo como pobre, enriquece-nos; descendo à terra faz-nos subir, abrindo para nós a porta do céu. Fora de si, na medida em que, ao mesmo tempo, mantinha um olhar voltado verticalmente para o alto, nutrindo-se da presença e da graça de Deus; e outro olhar voltado horizontalmente para o chão e para os lados, disseminando a esperança da Boa Nova entre as pessoas sedentas de justiça e paz.

Fora de si a exemplo dos “discípulos” que, após a tragédia da cruz, no episódio do Pentecostes, tornam-se pelo fogo do espírito “missionários” do Evangelho. Aliás, sair de si é o primeiro passo da missionariedade. Sair de si, da centralidade dos próprios desejos e interesses, em busca de Deus e do próximo. Colocar-se a caminho, entregar-se nas mãos de Deus, como instrumento que se dispõe a abrir novas veredas numa história marcada por profundas injustiças, corrupção e desigualdades sociais.

* Padre Alfredo J. Gonçalves, CS, vigário Geral dos missionários scalabrinianos em Roma.

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