Quem matou Dorothy Stang continua matando

de Jacques Távora Alfonsin *

A repercussão desse assassinato deu a impressão que a violência de crimes praticados por motivos idênticos, se não fosse eliminada, pelo menos diminuiria. Os fatos posteriores vêm provando o contrário. Camponesas e camponeses de Anapu, no sul do Pará, certamente vão se reunir neste 12 de fevereiro, para lembrar a morte da freira Dorothy Stang, uma fiel e dedicada companheira delas/es, religiosa conhecida por sua coragem e disposição.

A religiosa foi assassinada em razão de sua luta em favor do povo pobre daquela região, da reforma agrária, e contra o desmatamento crescente que lá se verificava, promovido por latifundiários interessados, como em outros lugares do país, na expansão do plantio de soja, na conquista de espaço para o gado, em mineração e em vender madeira.

000 a a a adorothy2A repercussão nacional e internacional desse assassinato deu a impressão, como já ocorrera com o massacre de Eldorado do Carajás, sintomaticamente acontecido no mesmo Estado do Pará, que a violência de crimes praticados por motivos idênticos ao que matou Dorothy, se não fosse eliminada, pelo menos diminuiria.

Os fatos posteriores vêm provando o contrário, chamando a atenção até de órgãos da imprensa estrangeira como é o caso do Financial Times. Na sua edição de 10 de dezembro de 2015, abriu matéria sob a seguinte manchete: “Terras sem lei ameaçam compromisso climático brasileiro.”

É que estava em andamento naquela semana a COP 21, em Paris, encontro no qual o Brasil se comprometeu, segundo a mesma notícia, a acabar com o desmatamento ilegal, aqui, até 2030… O jornal manifestava pouco acreditar nisso (mesmo um prazo dessa extensão não ser nada pequeno, levando-se em conta a gravidade do problema) diante de mais um assassinato ocorrido então na mesma Anapu. Winslei Gonçalves Barbosa, de 23 anos, fora emboscado e morto:

“Uma bala está alojada em seu capacete, que rolou para o lado. Mas a polícia ainda não chegou e muito menos começou a buscas pelos seus assassinos. É mais um sinal da ausência de lei e da violência que afligem grande parte da Amazonia brasileira – problemas que têm um peso direto nas discussões globais que estão perto de um desfecho em Paris nesta semana.”

Sobre o trabalho da Irmã Dorothy, a notícia refere: “Tomar partido dos sem-terras foi parte do trabalho de Stang, cuja memória é homenageada em Anapu por uma procissão anual comemorativa através da cidade empoeirada, junto com o Fusca branco dela, muito bem cuidado. Stang defendeu dois grandes “projetos de desenvolvimento sustentável” em terras governamentais que os pecuaristas ocuparam: Esperança, onde Gonçalves Barbosa foi assassinado, e Virola-Jatobá. A ideia de Stang era permitir que os sem-terras fossem assentados em troca da preservação de grande parte da floresta. Um grupo de fazendeiros comandado por Reginaldo Pereira Galvão, conhecido como “Taradão”, encomendou seu assassinato para barrar a execução dos projetos. Galvão foi condenado pelo crime a 30 anos de prisão, mas continua solto após apresentar recurso e aguarda o resultado.”

Uma crítica procedente de um jornal estrangeiro pode ser colocada sob reserva, mas se ela for comparada com dados da própria CPT, recolhRV13283_Articoloidos pelo site Agência Brasil no início de janeiro de 2016, tem-se de reconhecer como bem fundadas as desconfianças ali manifestadas sobre o nosso Estado de Direito:

“O número de assassinatos decorrentes de conflitos no campo em 2015 foi o maior dos últimos 12 anos no Brasil, com 49 mortes registradas, a maior parte na Região Norte” “A CPT ressalva, no entanto, que os dados são ainda parciais e podem vir a aumentar à medida que sejam consolidadas as informaçães provenientes do trabalho in loco.” “O número de mortes decorrentes de conflitos no campo no ano passado foi o maior desde 2003, quando foram contabilizados 73 assassinatos.” ” O Norte do país é um barril de pólvora‘, disse o coordenador da CPT em Pernambuco, Plácido Júnior, responsável pela compilação dos dados nacionais: Além do avanço do agronegócio tradicional, acreditamos que o aumento das tensões no campo em 2015 tenha relação com maiores disputas por recursos como madeira e água, o prosseguimento de grandes emprendimentos de mineração e energia e a diminuição no número de assentamentos e demarcações.” “Dados da entidade mostram que de 1.115 casos de homicídio decorrentes de conflitos no campo registrados entre 1985 e 2014, 12 foram julgados.”

A convivência com uma realidade de tamanha injustiça não pode continuar anestesiando a nação como se toda ela só dissesse respeito às vítimas dos seus trágicos efeitos. O passado tem-nos mostrado quantas pessoas “de fora” vêm para cá, escandalizadas com isso e por motivos bem diferentes das grandes empresas transnacionais. Oferecem as suas próprias vidas em defesa da nossa terra e da nossa gente, como fez a Irmã Dorothy e muitas/os missionárias/os.

O Frei Henri Burin des Roziers, advogado da CPT em Xinguara, também no Pará, tem de andar acompanhado de seguranças, como outras pessoas do clero e fora dele, ameaçado de morte como está. Em uma entrevista concedida à uma revista, anos passados, quando essa segurança praticamente lhe foi imposta, tão grande era o temor de se repetir o acontecido com a Irmã Dorothy, ele disse tudo o que precisa ser dito, a respeito da segurança e da paz a que têm direito as/os camponesas/os brasileiras. Por rejeitar o privilégio a ele conferido, por ser quem é, preferiria viver sem escolta alguma, num Estado garante de segurança para todas/os, fruto de uma convivência fraterna sobre terra, na qual a reforma agrária tivesse alcançado reparti-la de forma justa, não usurpada por poucos, em favor da reprodução da pobreza e em prejuízo da maioria.

* Jacques Távora Alfonsin é procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

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