Por Dom Walmor Oliveira de Azevedo*
Solidariedade é o qualificado selo de autenticidade da cidadania, é o olhar humano nobre, dirigido ao pobre e ao vulnerável, que inspira a compaixão, alicerçando gestos de partilha capazes de renovar esperanças. Dos cristãos, a solidariedade é selo de autenticidade da fé. Muitos se dizem religiosos, se inscrevem em diferentes confissões, mas, somente quem é solidário vivencia, genuinamente, o Cristianismo. O ensino do Novo Testamento, com raízes profundas na tradição judaica do Antigo Testamento, interpela cada pessoa que se propõe a seguir Jesus com a exigência da solidariedade.
Jesus Cristo é o Deus da solidariedade, o filho do Pai solidário com a humanidade sofredora e submersa na condenação do pecado. O coração que se abre à ação do Espírito Santo, à Trindade, é inspirado a agir de forma sempre solidária, com palavras que consolam, a partir de gestos corajosos e considerando que o outro, o irmão, é sempre mais importante – um princípio da moralidade cristã. Não há, pois, outro caminho para a civilização contemporânea. A única via possível é a da solidariedade. Se não for trilhada, a humanidade continuará a ser atormentada, de modo devastador, por pandemias. No sofrimento, perceberá que não adianta acumular riquezas para vencer a morte. O mal só se vence com a luz da efetiva solidariedade. Uma luminosidade capaz de debelar até mesmo a morte, conforme ensina a ressurreição de Cristo.
Estranha muito, e certamente revela perversidades, escolhas equivocadas, quando alguns cristãos agem como se tivessem medo da solidariedade. Fecham-se às ações solidárias, sentem-se ameaçados nas fronteiras impostas por seus próprios egoísmos doentios. Passam a caluniar a solidariedade, para enfraquecê-la, valendo-se de estereótipos obsoletos e inadequados, vinculados a ideologias políticas sem consistência. Assim procedendo, talvez sem perceber e sem se dar conta de que estão se contrapondo à solidariedade, essas pessoas habitam no terreno de outras ideologias políticas igualmente perversas, que alimentam a indiferença em relação aos pobres, aos trabalhadores da cidade e do campo.
A Doutrina Social da Igreja Católica convoca os cristãos a se sensibilizarem diante da humanidade ferida, que não encontrará a sua cura em uma economia gananciosa. A recuperação somente virá a partir de novas configurações fundamentadas na solidariedade, no respeito, no amor. Mas o amor cristão exige o compromisso de denunciar o que está errado e ajudar no desenvolvimento de novos projetos nos campos social, cultural e econômico, capazes de garantir a todos o direito e a justiça. O ciclo novo que se espera ao final dessa pandemia do novo coronavírus necessita da inspiração de um humanismo integral e solidário.
Não pode prevalecer a mesquinhez nos mais diferentes grupos ou mesmo na interioridade de cada pessoa. No coração humano deve habitar a voz da solidariedade,
que corrige rumos, alarga horizontes de modo iluminador, exigindo novas lógicas e práticas. O coração solidário salva a mente de escolhas políticas obscurecidas, enraizadas em fanatismos ou na escravidão ao dinheiro. A oportunidade de consolidar um ciclo novo para a humanidade depende de muitos e de cada um. Precisa de lúcida e qualificada participação, particularmente das instâncias governamentais, legislativas e judiciárias a serviço do povo, do bem comum e da justiça. Trata-se de um longo caminho de purificação para vencer o acúmulo de vícios e práticas abomináveis – manipulação, iniciativas motivadas por interesses espúrios, perpetuação de privilégios e submissão ao dinheiro, por medo ou conivência.
A solidariedade é a luz que precisa revisitar mentes, corações, contextos diversos, a exemplo de tribunais, mesas executivas, esferas variadas da conjuntura cidadã. Estre esses, está o mundo do trabalho que merece especial atenção. É preciso um olhar solidário para reconhecer a importância e, assim, respeitar trabalhadores e trabalhadoras, considerando a sacralidade de seus direitos e de sua dignidade. Neste Dia do Trabalho, importante mais uma vez retomar o que ensina a Doutrina Social da Igreja Católica, para que as mudanças em curso não ocorram de modo determinista. Seja a humanidade protagonista das transformações almejadas e cada pessoa torne-se reconhecida como protagonista de seu trabalho. Modos mecanicistas e economicistas de ordenamento social são perigosos. Em vez de propostas inadequadas, pouco lúcidas e que desrespeitam a dignidade humana, particularmente do trabalhador, a humanidade é convocada a priorizar o selo da solidariedade.
* Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte. Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)